Sammy Davis Jr. Canta “Mr. Bojangles”; Berlim, 1972

A interpretação de “Mr. Bojangles”, composição de Jerry Jeff Walker, por Sammy Davis Jr. talvez seja a versão mais tocante, profunda e pessoal desta canção. A entonação de sua voz e os seus gestos da sutil coreografia 'bobfosseana', levavam Sammy a tornar-se a própria canção.


 
Sammy Davis Jr. canta “Mr. Bojangles”. Concerto da Unicef em 1972 em Berlim. Show transmitido pela TV alemã em 18 de outubro de 1972. 

A canção cantada pelo grande cantor, dançarino, ator e comediante Sammy Davis Jr. (1925—1990) no clipe acima foi escrita por Jerry Jeff Walker, cantor e compositor de música country nascido no estado de New York em 1942 e que faleceu neste mês, 23 de outubro de 2020. A canção fez parte do disco de 1968 lançado por Jerry e, não por acaso, por muito tempo o personagem da letra, Bojangles, foi diretamente associado a Bill “Bojangles” Robinson.

“Mr. Bojangles” era o nome artístico de Bill Robinson (1877—1949), um ator e dançarino de sapateado que trabalhou na Broadway, no rádio e em vários filmes nos anos de 1930, incluindo uma série de filmes com a famosa atriz mirim Shirley Temple (1928—2014). Bill “Bojangles” Robinson foi o primeiro artista negro mais bem pago da indústria do entretenimento na primeira metade do século XX nos Estados Unidos, e após o seu sucesso, vários sapateadores negros que dançavam nas ruas ficaram conhecidos como “Bojangles”.

No entanto, a letra da canção fala de um desses outros vários sapateadores de rua conhecidos como Bojangles, e não de Bill Robinson.

Jerry Jeff Walker, durante sua viagem pelos Estados Unidos, foi preso em 1965 na cidade de New Orleans por embriaguez, e por tentar convencer uma jovem que ele estava apaixonado por ela. Na cela ele conheceu um senhor branco que usava o nome 'Bojangles' escondendo da polícia a sua verdadeira identidade e, que dançava para alegrar seus companheiros na cadeia. Em sua autobiografia 'Gypsy Songman' (Cantor Cigano, em tradução livre) de 1999, Jerry Jeff Walker narrou o episódio:

“Um dos caras na cela se levantou e disse, 'Vamos lá, Bojangles. Dança pra gente'. Bojangles foi bem menos um nome e mais uma categoria de artistas de rua itinerantes conhecidos desde o século passado. Esse senhor respondeu, 'Sim, claro que sim'. Ele se levantou e, marcando o ritmo com as mãos, começou a dançar. Passei aquele feriadão conversando com aquele senhor, escutando sobre os duros golpes que a vida lhe deu, e contando pra ele os meus sonhos”.

Aquele senhor lhe contou várias 'estórias' da sua vida, e assim como o original Bill “Bojangles” Robinson, o sr. Bojangles que dividiu a cela de cadeia com Jerry, como diz a letra da música, também trabalhou nos espetáculos de 'minstrel'—que não traduzimos no vídeo mas que foi uma forma de espetáculo de música e dança nascido no sul dos Estados Unidos após a guerra civil que apresentava os negros de forma caricata e altamente ofensiva; e foi nestes espetáculos itinerantes que se estabeleceu a técnica caricata e ofensiva dos artistas brancos pintando suas faces de preto caracterizando os negros como indolentes e preguiçosos. Mas, dentre tudo que o sr. Bojangles contou de sua vida, o que mais tocou Jerry foi a 'estória' de seu cachorro que morreu atropelado, tornando-se quase um tema central da canção.


Para Sammy, “Mr. Bojangles” foi uma canção especial. O Sr. de pele branca de nome Bojangles que dividiu a cela com Jerry, na voz de Sammy torna-se um dançarino negro, um dos que ele talvez tenha conhecido durante sua carreira como cantor e dançarino, ou talvez ele mesmo.

Embora “Mr. Bojangles” tenha sido interpretada por vários artistas—dentre eles, Bob Dylan, Nina Simone, Whitney Houston e a brasileira Jane Duboc—, a interpretação de Sammy para esta música é uma das mais pessoais. De fato, a canção tem sido altamente associada a Sammy Davis Jr., pois ele a fez sua canção-emblema desde que a gravou em 1972 tornando-se um número obrigatório em suas apresentação no palco e na televisão por quase duas décadas.

Em uma apresentação em 1985, também em Berlim, Sammy diz que não poderia deixar de cantar a canção em seus shows porque a canção era “muito especial” para ele. Ele explicou essa significância especial de “Mr. Bojangles” em 1989 durante a comemoração do seu aniversário de 60 anos: ele tinha medo de se tornar um Sr. Bojangles; um artista que é esquecido; que surge e se vai como fumaça, mesmo tendo todo o talento do mundo—vale lembrar que Sammy foi os primeiro negro-estadunidense a ter um programa de variedades na televisão, The Sammy Davis Jr. Show e, entre altos e baixos, teve uma longa carreira e sucesso internacional.

Por isso, talvez, sua interpretação seja tão mergulhada em sentimentos, em emoção e apresenta uma dose de melancolia. Sammy iniciou sua carreira no final dos anos de 1920, dando continuidade a profissão de seus pais nos palcos. E certamente ele também enfrentou os golpes duros da vida e do racismo crescendo dentro do mundo do entretenimento desde os 3 anos de idade.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Sammy sofreu abusos físicos dos soldados brancos dos estados do sul dos Estados Unidos—seu nariz foi quebrado várias vezes nestes confrontos. Quando ele perdeu um de seus olhos em um acidente de carro em 1954, ele temeu não ser possível regressar a vida artística após a sua recuperação. Seu namoro inter-racial com a atriz Kim Novak (1933—) não foi bem recebido e foi interrompido, e seu casamento em 1960 com a atriz sueca May Britt (1934—) também não foi aceito pela sociedade, inclusive pelo recém-eleito presidente John F. Kennedy, para o qual Sammy fez uma intensa campanha e foi desconvidado de sua apresentação na cerimônia de posse presidencial um dia antes do evento. Sammy recebeu diversas ameaças de morte por seu casamento. Na época, somente 4 por cento dos estadunidenses eram a favor do casamento inter-racial.

Mas Sammy continuou sua carreira, ele participou do movimento de direitos civis, e também criou laços de amizade com poderosos personagem do ramo, como Elvis Presley, e Frank Sinatra com quem trabalhou em várias ocasiões fazendo parte de seu círculo pessoal. Mesmo assim, e a despeito de seu enorme talento, é sabido que Sammy sempre foi inseguro pela maior parte de sua vida adulta. Sammy bebia demais e desenvolveu cirrose, viveu um período ligado na cocaína, e tentou o suicídio uma vez. Talvez, como sugere o artigo do site No Words, No Song, “'Mr Bojangles' — Sammy Davis Jr.”, ele tenha encontrado muito do personagem da letra da canção ecoando as suas próprias experiências e conflitos pessoais. O autor do artigo diz,

“Estou certo de que [Sammy] também estava canalizando um pouco do original Bill “Bojangles” Robinson quando ele cantava a canção. O original 'Mr. Bojangles' morreu sem um tostão apesar de ter sido um dos grandes artistas da sua geração. Um conto de cautela presente na mente de Sammy Davis Jr.”.

Muito embora a canção seja um conto de declínio e derrota de um artista de rua, a letra também mostra um jovem disposto a ouvir uma pessoa mais velha lhe contar sua vida e seus segredos, e ao mesmo tempo, mostra um jovem capaz de sentir empatia e de encontrar inspiração. Esta é a composição mais famosa de Jerry Jeff Walker, e talvez a única que a maioria das pessoas conhece de sua autoria. A letra de “Mr. Bojangles” reflete o medo que o ser humano sente de vir a ser esquecido.

Sammy, interpretando este número, encarnou tanto a canção bem como o próprio dançarino descrito na letra. Uma apresentação fantástica e emocionante que mostra o talento do grande artista que foi Sammy Davis Jr.

c&p


Referências:

Sammy Davis Jr., Wikipedia,

Bill "Bojangles" Robinson, Wikipedia 


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