“Questão de Gosto”: A foto de Symone Seven que perturbou nosso padrão estético racista


“Humanize Being Black” ©Symone Seven (2020).
(Foto publicada em sua conta do Facebook em 19 de junho de 2020.)
 

Por volta do dia 18 de junho de 2020, quando das continuadas manifestações antirracistas nos Estados Unidos, Symone Seven publicou um autorretrato como foto de perfil de sua conta do Twitter e do Facebook. Na foto, ela usa uma exageradamente longa e volumosa peruca crespa, e uma camiseta branca com a frase-nome da marca de roupas Humanize Being Black (Humanize Ser Negro) estampada em letras pretas. A foto chega ao Brasil poucos dias depois e logo invade as redes sociais em forma de memes gerando grandes discussões sobre racismo e estética. Interessantemente, o nome da artista e seu trabalho ficaram virtualmente ausentes em tais discussões.

Algumas postagens inicialmente usaram a foto para celebrar a beleza da mulher negra. Mas logo, para a surpresa de ninguém, pipocaram os memes que compararam o cabelo da fotógrafa negra com a famosa marca de esponja de aço—a mesma que no mesmo período foi acusada de racismo quando lançava uma nova esponja de aço cujo nome fazia referência direta ao cabelo da mulher negra e que logo foi retirada do mercado. Um outro meme mostrando a foto de Symone lado a lado a foto de uma mulher branca também de cabelos bem longos, perguntava, “Pq um é exagero e o outro não”? e logo respondia, “Pq vc é racista”. O print do post é publicado por uma moça, que escreve, “Gente plmds cada um tem sua opinião UE Eu achei estranho”. E, de print a reprints e compartilhamentos, a foto provocou uma discussão sobre racismo, e sobre a “questão de gosto”.

A foto/memes nas redes sociais (tendo o Facebook como fonte para este texto), gerou fortes debates. Em relação a comparação do cabelo afro com a esponja de aço, surge o velho e frágil argumento é piada não é racismo como defesa desses memes, fato que ainda nos choca. No entanto, são as reações aos memes racistas que argumentaram que não gostar do cabelão é uma questão de gosto e não de racismo que nos chama a atenção, pois estas surgem como se a foto e os memes fossem parte de um editorial de moda tentando ditar uma nova tendência; ou como se a mesma estivesse concorrendo a um concurso de melhor estilo de cabelo no qual a opinião pública é requisitada.

Muitos internautas, incluindo afro-descendentes, afirmaram 'não gostar' do cabelo usado por Symone. O argumento “questão de gosto” soa como uma declaração coerente e honesta, e é. Mas considerando a histórica supervalorização da estética branca/europeia no Brasil, tais comentários acabam reforçando o discurso racista, principalmente quando feitos nas postagens de memes racistas, desviando ainda mais a atenção da mensagem visual antirracista contida originalmente na foto—algo que escapou inteiramente da atenção daqueles comentaristas.

Talvez aquelas discussões tivessem tomado uma direção diferente caso o trabalho da artista fosse conhecido pelos internautas que participaram daqueles debates.

Symone Seven
Symone Seven é uma fotógrafa autodidata, diretora de arte, influenciadora digital e autoproclamada Rainha do Photoshop, radicada na cidade de Atlanta, sul dos Estados Unidos. Com seu trabalho a artista vem desenvolvendo uma estética de forte simbologia empoderadora negro-feminina.

“Autorretrato” ©Symone Seven (2019).

A fotógrafa estadunidense de 24 anos, surgiu como uma influenciadora digital alguns anos atrás destacando-se por sua criatividade e qualidade de suas composições visuais. Symone é conhecida por seus autorretratos e pelo uso que faz do Photoshop, recurso que ela passou a ensinar em cursos oferecidos online, e através de tutoriais e livros eletrônicos.

©Symone Seven (2019); Modelo: Alexus.

Suas obras realçam e enaltecem a beleza da mulher negra através do glamour da extravagância e da opulência, seja nas roupas, na combinação de cores, nos diferentes tipos de corpos femininos de suas modelos, e na forma e volume do cabelo. Ainda assim, o conjunto de suas obras transmite delicadeza, beleza, sensualidade e uma sofisticação casual, tudo somado ao vigor e a intensidade do sentimento de honra.

“Black Queen”. ©Symone Seven (2020).
A foto “Black Queen” apresenta a imagem de Symone Seven substituindo a imagem da Rainha Charlote de Mecklenburg-Strelitz (1744—1818)—esposa do Rei George III da Inglaterra, que reinou de 1750 a 1820a—na obra de 1762 do pintor Allan Ramsay Fotografia publicada em 3 de março de 2020 na página de Symone Seven no Facebook. Com base em argumentos frágeis e controversos, desde os anos de 1950 alguns escritores sugerem que a rainha Charlotte teria sido mulata, uma teoria que ganhou força no início deste século e parece ter guiado Symone na composição desse trabalho.

“Uma parte da mágica da fotografia é criar fantasia. Podemos fazer qualquer coisa que imaginarmos no mundo do Photoshop. Às vezes eu gosto de adicionar um glamour extra às minhas fotos exaltando a beleza tornando o cabelo maior e mais comprido”. Symone Seven; Facebook, 2 de setembro 2019

A manifestação glamourosa de extravagância e opulência através de uma simplicidade elegante torna-se uma das bases de suas alegorias visuais, nas quais Symone parece propor a ocupação de espaços não destinados à mulher negra, como por exemplo nas obras onde ela se coloca em capas da revista Vogue, ou na foto em que sua imagem é usada na pintura da Rainha Charlote da Inglaterra (1744—1818), ou ainda quando ela ocupa o papel das princesas da Disney. Essa 'ocupação' também ocorre através do volume do cabelo que frequentemente surge coroando sua cabeça, muitas vezes resultando visualmente no aumento da própria negritude da artista.

Desta forma, aqui observamos que a estética de Symone Seven se torna a pura declaração de que nunca é demais ser tão extremamente bem negro.

E esta é uma visão revisionista positiva sobre o corpo do negro e, mais precisamente sobre o corpo da mulher negra, considerando o fato de que o grande como visão estética corporal da mulher africana já foi vista e explorada negativamente como demais e exagerada e até mesmo ameaçadora e super sexualizada (como no caso de Saartjie Baartman ao se tornar a Vênus Hotentote).

No Brasil, Symone Seven chegou a ser notícia em maio deste ano por sua série de autorretratos nos quais ela se transforma em princesas da Disney. A revista feminina Capricho, por exemplo, em 22 de maio publicou o artigo, “Fotógrafa negra vira Princesas da Disney em série de autorretratos. Symone Seven usa sua influência nas redes sociais e seus conhecimentos de Photoshop para empoderar!”. 

A Foto do Cabelão
Além do super cabelo, Symone usa uma camiseta com a frase da marca Humanize Being Black que, em tradução literal, significa “Humanize Ser Negro”, uma nova linha de roupas, empreendimento de um jovem negro de 21 anos que fundou sua própria empresa após ouvir insultos racistas de um pequeno menino branco na loja onde trabalhava como auxiliar de almoxarifado. O nome emblemático da marca de roupas acompanha o sentimento e a mensagem do nome do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). Ao usar a camiseta e usar o nome da marca na frase que acompanha a foto, Symone também parece ajudar na divulgação do empreendimento, ao mesmo tempo se dirigindo aos atos antirracistas que ocorriam em seu país.

Os grandes protestos gerados nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd pela polícia em Minneapolis no dia 25 de maio, ainda reverberavam mundialmente quando a foto de Symone surge nas redes sociais e, quando a mesma vira meme racista no Brasil. As grandes manifestações pedindo a reforma da polícia e de legislações para lidar com as desigualdades raciais, formam o contexto do momento da criação da foto. Ainda assim, o autorretrato de Symone como manifestação antirracista não chegou às discussões no Facebook e, por serem desconhecidos, os seus significados foram ainda mais 'sufocados' pelos memes racistas, abrindo espaço para diferentes leituras da obra.

Consequentemente, como memes, outros significados foram atribuídos à fotografia, onde nem os internautas mais antenados—constantes usuários do vocabulário inglês em frases no português—foram capazes de decifrar a mensagem da frase estampada na camiseta. Talvez desta forma, a foto tenha soado para muitos, incluindo negros e negras, como algo ameaçadoramente intrigante, mas ainda assim indesejado. Isso é expressado nos comentários, “não gostei desse cabelo”, “é muito grande”, “estranho”, chegando às observações mais triviais e inofensivas, como as que questionavam a quantidade de xampu e de condicionador que seria gasta, e a dificuldade para desembaraçá-los.

 “Trollagem e Zoeira não têm limites”. Print de um comentário em um meme racista publicado em um grupo contra o racismo no Facebook pedindo aos administradores para que o autor do comentário fosse retirado do grupo. Publicado no Facebook em 26 de junho.

Os comentários justificando os memes de fundo racista, como esperado, não saíram do lugar comum da banalização e da tentativa de normatização do racismo. Como resposta às crítica antirracistas, alguns defensores desses memes argumentaram que os mesmos eram apenas “piadas”, “sátiras”, “zoeira”. Alguns ainda sugeriram que a equação da esponja de aço + cabelo do negro é uma inocente brincadeira, parte natural do ser humano. Felizmente, as respostas antirracistas a estes comentários foram intensas.


Uma questão de gosto
Histórica e negativamente chamado de “cabelo ruim”, o cabelo dos negros é um elemento presente na construção do racismo brasileiro. Como um traço físico, o cabelo é parte da visão criada e imposta sobre os negros como portadores de uma estética corporal inferior e indesejada.

As teorias raciais pseudo científicas da virada do século 19 ao século 20 expandiram e oficializaram ideais racistas já existentes e demonizaram a miscigenação. Tais teorias tiveram como objetivo principal consagrar a 'raça' branca como superior que se diferenciava das outras não só pelo aspecto físico, mas também por uma suposta superioridade moral e intelectual. Tudo que se refere ao “branco” tornou-se automaticamente o modelo daquilo que é “bom” (e do “bem”). Consequentemente, o que não é branco representaria o “ruim” (o “mau” e do “mal”) moral, intelecto e fisicamente. O negro e o mestiço tornaram-se a “classe perigosa” e ainda hoje são categorias raciais consideradas parte natural do perfil do criminoso

Além da pele, o cabelo negro tornou-se um símbolo deste perfil ameaçador, e o quanto maior for esse traço físico, mais ele acentuará a negritude, inclusive a de afro-descendentes de pele clara.


“Tem que achar lindo senão é preconceito”. A imagem foi compartilhada por uma internauta no Facebook em 25 de junho que escreveu: “(...) Como o preconceito persiste em se manter??! Observe a imagem ... Uma mulher negra com um cabelo afro (um carinha louro do meme com um discurso que desmerece a identidade negra). A turma compartilha o preconceito em forma de 'humor', totalmente, sem racionalidade. Quantas piadas de pessoas brancas de cabelo liso vc conhece ?? E quantas sobre cabelo afro vc já riu ?? (...)” 

É comum homens Afro-descendentes cortarem seus cabelos bem baixinho, por razões que, nesses tempos de racismo armado, faz sentido para qualquer negro—e é significativo o fato de que vários homens negros adultos experimentaram deixar seus cabelos crescerem pela primeira vez durante o período de isolamento social que segue a atual pandemia de COVID.

Já a mulher negra é historicamente alvo de situações violentamente constrangedoras envolvendo o seu cabelo. Piadas, sátiras e, hoje os memes, visam fazer a mulher negra se sentir menor, destruir sua autoestima e, obviamente, humilhá-la. Da mesma forma que a necessidade de cirurgia plástica para afinar o nariz “batatudo” é, para o jornalista Fernando Sagatiba, “atender o chamado opressivo do racismo”, poderíamos dizer que o alisamento de cabelos para muitas mulheres negras é também uma tentativa de amenizar os ataques racistas que sofrem e, por mais incrível que possa soar, uma forma de conseguir e de manter um emprego.

Aqui, “questão de gosto” pode surgir entre negros e negras como uma justificativa para a sua própria expropriação, até mesmo válida, uma vez que essa pode lhes servir como garantia de subsistência em uma sociedade altamente racista. 

Por exemplo, ao falar sobre colorismo, Aline Djokic aponta a camuflagem da negritude como estratégia de sobrevivência. Ela diz:

“Na nossa sociedade a tolerância do sujeito negro é construída através do mimetismo. O exemplo mais comum de mimetismo é o de insetos, como o caso da borboleta caligo memnon, cujas asas abertas se parecem com o rosto de uma coruja. Essa espécie de 'camuflagem' a protege de possíveis predadores e é uma estratégia de sobrevivência.

Para serem toleradas na sociedade racista e discriminatória, as pessoas negras viram-se forçadas a praticar o mimetismo para terem acesso a espaços dos quais sempre foram excluídas. Os alisamentos capilares também nasceram dessa necessidade de 'camuflar' a própria presença, de tornar-se menos 'perceptível' para a branquitude e assim garantir a própria sobrevivência”.

Hoje, os memes que ridicularizam o cabelo negro são as novas ilustrações da velha cartilha formadora do racista, perigosamente justificados como piadas inofensivas 'da internet'. Esta ainda é uma eficaz ferramenta de opressão, inferiorização e desumanização do negro—parte de uma histórica e contínua estratégia de colonização, subalternização e de domínio do corpo negro. Em reação, negras e negros são levados a tentarem ser 'menos' negros para se encaixarem no padrão socialmente aceitável e permitido. E esta é uma resposta conciliadora ao racismo, assim como 'questão de gosto' como comentário em memes racistas também o é.

“Por que um é exagero e o outro não?” Uma das versões da montagem da foto de Symone Seven ao lado de uma mulher branca com cabelos longos. Montagem publicada em 26 de junho no Facebook.

Tanto os comentários que justificam e naturalizam os memes racistas como “piada” quanto aqueles que usam o argumento “é uma questão de gosto” como justificativa do desagrado com o exagero do cabelão da jovem fotógrafa, infelizmente derivam do mesmo alicerce racial do nosso país. Maria Teresa Ferreira Jurado define o “racismo estrutural” como a

“naturalização de ações, hábitos, situações, falas e pensamentos que já fazem parte da vida cotidiana do povo brasileiro, e que promovem, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito racial. Um processo que atinge tão duramente — e diariamente — a população negra”.

A super valorização da estética branca/europeia na cultura brasileira padroniza o que é aceitável. Isso se reflete na baixa representatividade de negros e negras na política, na TV e no cinema etc. A beleza negra ainda é classificada como beleza exótica e, se apresentada com 'traços finos', poderá até se configurar como uma 'boa aparência'. E ainda sobre a montagem com a foto de Symone Seven ao lado a foto da loira que pergunta, “Pq um é exagero e o outro não?”, os comentários “não gostei” se dirigiram quase que exclusivamente à imagem de Symone Seven. Bem pouca atenção foi dada ao exagero do cabelo da mulher branca, evidenciando também a aceitação do 'exagero' branco.

É necessário apontar que o “não gostar” do cabelo/peruca da foto de Symone Seven não é necessariamente um ato ou uma prática diretamente racista. Contudo é preciso notar que a questão de gosto ainda é fortemente informada pela construção das distinções sociais baseadas em raça no Brasil. As respostas a foto de Symone ao lado da foto de uma mulher loura, evidencia a preferência pelo que é 'branco' se observado que a montagem de fotos não pergunta qual dos dois cabelos você não gosta? Porém, além de ser uma manifestação de estima pela estética branca, questão de gosto também é uma resposta à necessidade de manifestação do gosto pessoal em um fórum público no Facebook; necessidade talvez motivada por uma obrigação implícita de 'gostar' e 'não gostar'; de se 'reagir' às publicações em nossa linha do tempo (“curtir”, “amar”, “tristeza”, “raiva”, “espanto/perplexidade” e, mais recentemente, “se importar/carinho”).

Ao cair de paraquedas no Brasil, a foto de Symone Seven levou alguns vários à prática da trollagem imatura, a mais um exercício masturbatório de caráter unicamente racista—que também funciona como manobra de repressão do orgulho de ser negro. Muitos outros reagiram à foto seguindo inconscientemente os padrões traçados pelo racismo estrutural tornando-se incapazes de encontrar qualquer qualidade, criatividade, beleza, e até mesmo incapazes de decifrar a mensagem antirracista (em um inglês básico) na composição da foto de Symone Seven.

O trabalho da fotógrafa é um forte manifesto da negritude pan-americana e, automaticamente estimula discussões e, consequentemente perturba a paz. A foto, o contexto no qual a mesma foi produzida e as reações que a mesma provocou no Facebook nos lembra que primeiro puxarão os cabelos do negro para depois sufocá-lo pelo pescoço. Mas o que Symone Seven realmente nos lembra, é que é impossível ser 'menos' negro, pois sempre seremos lembrados do que somos. Por isso nunca será demais e nunca deveria ser um problema ter orgulho ou gostar de ser—e daquilo que é—exageradamente tão negro.

c&p

Conheça mais sobre o trabalho de Symone Seven

Symone Seven Website 

Symone Seven no Twitter 

Symone Seven Instagram 

Symone Seven no Facebook 

Humanize Being Black Website 


Fontes:


BBC Brasil, “Bombril retira 'krespinha' do mercado: acusações de racismo fazem marcas reverem produtos”.

Nathália Geraldo, “Na quarentena, homens negros deixam cabelo crescer pela 1ª vez: 'Transição'”.

Aline Djokic. Blogueiras Negras. “Colorismo: o que é, como funciona”. 

Fernando Sagatiba. Mundo Negro. “Precisamos falar sobre o 'nariz de batata'”. 

Caio Tortamano. Aventuras na História.  “Explorada e Exibida Como Atração Humana: 5 fatos tristes sobre Sarah Baartman”. 

Rainha Charlotte, Carlota de Mecklemburgo-Strelitz, Wikipedia.

Livia Maria Terra, “Negro Suspeito, Negro Bandido: Um estudo sobre o discurso policial”.  

Socialista Morena. “Onda negra, medo branco: a Justiça brasileira ainda usa a eugenia para condenar pretos”.


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('Trollagens' e comentários desrespeitosos e ofensivos não serão publicados):