Durante a pandemia de influenza (mais conhecida no Brasil como Gripe Espanhola) de 1918-1919, que causou mais mortes do que a Primeira Guerra Mundial, os médicos de um hospital emergencial temporário em Boston “observaram que os pacientes severamente doentes que foram atendidos ao ar livre tiverem uma melhor recuperação do que aqueles pacientes tratados em ambientes internos”.
Pacientes da influenza tomando banho de sol na emergência do hospital ao ar livre Camp Brooks em Boston. (Imagem: National Archives; Internet) |
A combinação de ar fresco e banho de sol parece ter prevenido mortes de pacientes assim como ter prevenido infecções na equipe médica.
Segundo Richard Hobday, especialista em controle de infecções e em saúde pública e arquitetura, aquela experiência talvez possa ser útil na atual pandemia do Covid-19. Assim, neste momento de crise, traduzimos o artigo de Richard Hobday, que segue abaixo, originalmente publicado na plataforma Medium no dia 10 de março deste ano.
Ar fresco, luz do sol e máscaras improvisadas parecem ter funcionado um século atrás; e eles talvez nos ajudem agora.
Quando surgem novas e virulentas doenças, tais como o SARS e o Covid-19, uma corrida se inicia em busca de novas vacinas e tratamentos. Com o desdobramento dessa atual crise, governos estão impondo a quarentena e o isolamento, e desencorajando a aglomeração de pessoas. Autoridades sanitárias adotaram essa mesma abordagem 100 anos atrás quando a influenza se espalhava pelo mundo. Os resultados dessa abordagem não foram muito claros. Todavia, os registros da pandemia de 1918 sugerem que houve uma técnica eficaz—que hoje em dia é pouco conhecida—para lidar com a influenza. A experiência alcançada com muito trabalho durante a maior pandemia registrada da história poderia nos ajudar nas semanas e meses a nossa frente.Resumindo, os médicos descobriram que os pacientes gravemente doentes que foram atendidos ao ar livre tiveram uma melhor recuperação do que aqueles tratados em espaço interno. A combinação do ar fresco e da luz do sol parece ter prevenido mortes de pacientes; e também preveniu infecções na equipe médica.[1] Existe suporte científico para o ocorrido. Pesquisas mostram que o ar livre é um desinfetante natural. O ar fresco pode matar o vírus da gripe e outros germes nocivos. Da mesma forma, a luz do sol é germicida e agora há evidência que a luz solar pode matar o vírus da gripe.
Tratamento 'Ao Ar Livre' em 1918
Durante a grande pandemia da influenza, os dois piores lugares para se estar eram as instalações militares e os navios de tropas. A superlotação e a péssima ventilação colocaram soldados e marinheiros em alto risco de contrair a influenza e outras infecções que frequentemente acompanham a doença.[2,3] Assim como o atual surto do Covid-10, a maioria das vítimas da chamada 'Gripe Espanhola' não morreram de influenza: elas morreram de pneumonia e de outras complicações.
Quando a pandemia de influenza alcançou a costa leste dos Estados Unidos em 1918, a cidade de Boston foi particularmente afetada de maneira grave. Assim, a Guarda Estadual montou um hospital de emergência. Eles acolheram os piores casos dentre os marinheiros dos navios no porto de Boston. O oficial médico daquele hospital observou que os marinheiros seriamente doentes tinham permanecido em espaços com péssima ventilação. Assim, ele os forneceu com o máximo de ar fresco possível, colocando-os em tendas. E, se o tempo estivesse bom eles eram retirados de suas tendas e expostos ao sol. Naquela época, colocar os soldados ao ar livre era uma prática comum. A 'terapia ao ar livre', como era conhecida, foi amplamente utilizada nas vítimas das linhas de frente da Primeira Guerra. Essa terapia se tornou o tratamento de escolha para outra infecção respiratória comum e frequentemente letal daquele período: a tuberculose. Os pacientes eram levados em suas camas para o lado de fora do hospital para respirar o ar fresco. Ou eram tratados em alas hospitalares com ventilação cruzada com as janelas mantidas abertas dia e noite. O tratamento ao ar livre permaneceu popular até ser substituído pelos antibióticos na década de 1950.
Os médicos envolvidos diretamente com o tratamento ao ar livre no hospital de Boston estavam convictos de que o tratamento era eficaz. O tratamento foi adotado em outras partes. E se um dos relatórios estiver correto, o tratamento reduz as mortes entre os pacientes de hospitais, de 40% para cerca de 13%.[4] De acordo com o Secretário de Saúde da Guarda Estadual do Estado de Massachusetts:
“A eficácia do tratamento ao ar livre foi absolutamente provada, e só é preciso a utilizar para se descobrir o seu valor”.
O Ar Fresco é um Desinfetante
Pacientes tratados ao ar livre eram menos propensos a serem expostos ao germes que estão frequentemente presentes nas alas hospitalares convencionais. Sabemos disso porque nos anos de 1960, cientistas do Ministério de Defesa dos Estados Unidos provaram que o ar livre é um desinfetante natural.[5] Há alguma coisa nele, que eles denominaram de Fator Ar Livre, que é muito mais nocivo às bactérias transmitidas por ar—e ao vírus da influenza—do que o ar de espaços fechados. Aqueles cientistas não puderam identificar o que exatamente é esse Fator Ar Livre. Mas eles descobriram que o fator era eficaz tanto durante a noite quanto durante o dia.
A pesquisa desses cientistas nos anos 60 também revelou que os poderes desinfetantes do Fator Ar Livre podem ser preservados em ambientes interiores—se os níveis de ventilação forem mantidos altos o suficiente. Significantemente, os níveis que eles identificaram são os mesmos daqueles projetados para as alas hospitalares com ventilação cruzada, com tetos altos e grandes janelas.[6] Mas naquele momento em que os cientistas faziam suas descobertas, a terapia com antibiótico substituía o tratamento ao ar livre. Desde então, o efeito germicida do ar livre não têm sido considerado em controles de infecção, nem em desenhos de arquitetura hospitalar. No entanto, as bactérias nocivas vêm se tornando altamente resistentes aos antibióticos.
Luz do Sol e Infecção Pelo Vírus da Influenza
O ato de pôr os pacientes infectados ao sol pode ter ajudado porque o sol inativa o vírus da influenza.[7] O sol também mata as bactérias que causam as infecções pulmonares nos hospitais.[8] Durante a Primeira Guerra Mundial, os cirurgiões militares usaram rotineiramente a luz do sol para tratar feridas infeccionadas.[9] Eles sabiam que a luz solar é um desinfetante. O que eles desconheciam era a vantagem de pôr os pacientes ao sol: a pele pode sintetizar vitamina D, se a luz do sol for forte o suficiente. Isto só foi descoberto na década de 1920. Hoje, o baixo nível de vitamina D é relacionado à infecções respiratórias e pode aumentar a susceptibilidade à influenza.[10] Também, os ritmos dos nossos corpos parecem influenciar como resistimos à infecções.[11] Novas pesquisas sugerem que esses ritmos podem alterar nossa resposta inflamatória ao vírus da gripe.[12] Assim como a vitamina D, no momento da pandemia de 1918, o papel importante que a luz do sol desempenha sincronizando esses ritmos biológicos também era desconhecido.
Máscaras Faciais: Coronavírus e Gripe
Atualmente as máscaras cirúrgicas estão em escassez na China e em outras partes. Elas foram usadas 100 anos atrás, durante a grande pandemia, na tentativa de impedir que o vírus da influenza se espalhasse. Muito embora as máscaras cirúrgicas possam oferecer alguma proteção contra infecções, elas não vedam a face integralmente. Então elas não filtram as pequenas partículas que são transmitidas pelo ar. Em 1918, qualquer um no hospital de emergência em Boston que tivesse contato com os pacientes tinham que usar uma máscara facial improvisada. Esta era composta de cinco camadas de gaze encaixadas a uma moldura de arame a qual cobria o nariz e a boca. A moldura era formatada para que se encaixasse na face de quem a usasse prevenindo que o filtro de gaze tocasse a boca e narinas. As máscaras eram substituídas de duas em duas horas; eram devidamente esterilizadas e gazes limpas eram colocadas na moldura. Essas máscara foram as precursoras dos respiradores N95 hoje em uso nos hospitais na proteção da equipe médica contra as infecções transmitidas pelo ar.
Hospitais Temporários
Durante a crise de 1918 a equipe do hospital de emergência em Boston manteve altos padrões de higiene pessoal e do ambiente de atendimento. Sem dúvida isso desempenhou um grande papel nos relativos baixos níveis de infecção e de mortes lá registrados. Um outro fator foi a rapidez com a qual o hospital e outras instalações ao ar livre foram montadas para lidar com o surgimento de pacientes com pneumonia. Hoje, vários países não estão preparados para uma pandemia severa de influenza.[13] Os sistemas de saúde desses países ficarão sobrecarregados, se houver sistema de saúde. As vacinas e as drogas antivirais talvez ajudem. Os antibióticos poderão ser eficazes para a pneumonia e outras complicações, mas a maior parte da população mundial não terá acesso a eles. Se um outro evento como aquele de 1918 vier por aí, ou se a crise do Covid-19 piorar, a história sugere que seja prudente ter tendas e alas pré-fabricadas prontas para lidar com um grande número de casos de pacientes seriamente doentes. Muito ar fresco e um pouco de raios de sol, talvez ajudem também.
Dr. Richard Hobday, é um engenheiro inglês internacionalmente reconhecido por seu trabalho em saúde. Ele é um pesquisador independente na área de controle de infecções, saúde pública e arquitetura, e luz solar. Ele é autor do livro “The Healing Sun” ('O Sol que Cura', em tradução livre).
Referências
1 - Hobday RA and Cason JW. The open-air treatment of pandemic influenza. Am. J Public Health 2009;99 Suppl 2:S236–42. doi:10.2105/AJPH.2008.134627.
2 - Aligne CA. Overcrowding and mortality during the influenza pandemic of 1918. Am J Public Health 2016 Apr;106(4):642–4. doi:10.2105/AJPH.2015.303018.
3 - Summers JA, Wilson N, Baker MG, Shanks GD. Mortality risk factors for pandemic influenza on New Zealand troop ship, 1918. Emerg Infect Dis 2010 Dec;16(12):1931–7. doi:10.3201/eid1612.100429.
4 - Anon. Weapons against influenza. Am J Public Health 1918 Oct;8(10):787–8. doi: 10.2105/ajph.8.10.787.
5 - May KP, Druett HA. A micro-thread technique for studying the viability of microbes in a simulated airborne state. J Gen Micro-biol 1968;51:353e66. Doi: 10.1099/00221287–51–3–353.
6 - Hobday RA. The open-air factor and infection control. J Hosp Infect 2019;103:e23-e24 doi.org/10.1016/j.jhin.2019.04.003.
7 - Schuit M, Gardner S, Wood S et al. The influence of simulated sunlight on the inactivation of influenza virus in aerosols. J Infect Dis 2020 Jan 14;221(3):372–378. doi: 10.1093/infdis/jiz582.
8 - Hobday RA, Dancer SJ. Roles of sunlight and natural ventilation for controlling infection: historical and current perspectives. J Hosp Infect 2013;84:271–282. doi: 10.1016/j.jhin.2013.04.011.
9 - Hobday RA. Sunlight therapy and solar architecture. Med Hist 1997 Oct;41(4):455–72. doi:10.1017/s0025727300063043.
10 - Gruber-Bzura BM. Vitamin D and influenza-prevention or therapy? Int J Mol Sci 2018 Aug 16;19(8). pii: E2419. doi: 10.3390/ijms19082419.
11 - Costantini C, Renga G, Sellitto F, et al. Microbes in the era of circadian medicine. Front Cell Infect Microbiol. 2020 Feb 5;10:30. doi: 10.3389/fcimb.2020.00030.
12 - Sengupta S, Tang SY, Devine JC et al. Circadian control of lung inflammation in influenza infection. Nat Commun 2019 Sep 11;10(1):4107. doi: 10.1038/s41467–019–11400–9.
13 - Jester BJ, Uyeki TM, Patel A, Koonin L, Jernigan DB. 100 Years of medical countermeasures and pandemic influenza preparedness. Am J Public Health. 2018 Nov;108(11):1469–1472. doi: 10.2105/AJPH.2018.304586.
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