Recusa a Assistir 'Olhos que Condenam' Não Tem Nada de Revolucionário

Aos 21 anos de idade, Jharrel Jerome ganhou o primeiro Emmy de sua carreira. O ator foi ovacionado durante a entrega do prêmio de melhor ator em minissérie ou filme para TV após interpretar Korey Wise em “Olhos Que Condenam”. Jharrel se tornou o primeiro afro-latino premiado na categoria. (Imagem: Reprodução/Internet: Youtube) 

Para encerrar o mês da Consciência Negra, resolvemos revisitar um dos grandes sucessos da Netflix deste ano: “Olhos que Condenam”.


Em 31 de maio deste ano, a Netflix lançou o filme-minissérie “Olhos Que Condenam”—“When They See Us” (Quando Eles Nos Veem) no original—, que em 4 episódios conta o drama real de cinco adolescentes do Harlem (4 negros e um latino), que passam por um pesadelo após serem injustamente acusados do ataque brutal a uma mulher branca no Central Park em 1989. Os adolescentes ficaram conhecidos como “Os 5 do Central Park”, termo cunhado pela mídia durante sua cobertura do caso. Com a confissão do verdadeiro responsável pelo crime, os 5 foram inocentados em 2002.

Contando com um elenco afiadíssimo e dirigido pela fantástica Ava DuVernay, a minissérie tem Oprah Winfrey como um dos produtores-executivos. A recepção da série foi maior do que a produção poderia esperar, inclusive fazendo com que uma das ex-promotoras do caso fosse abandonada pela editora que publicava seus romances policiais, e que outra promotora deixasse seu cargo de professora da Faculdade de Direito da Columbia University após manifestações de alunos negros daquela universidade.

A minissérie é emocionalmente forte e tem sido bastante elogiada pelo público. No mesmo mês de seu lançamento, esta foi a obra mais assistida na Netflix nos Estados Unidos. No Brasil, “Olhos” também foi bem recebida pelo público e por críticas positivas, como a de João da Paz, “Drama perturbador da Netflix, Olhos Que Condenam Escancara Injustiça racial”, que classifica a obra como “profunda” e “necessária”.

No entanto, a minissérie também criou um certo mal estar entre alguns brasileiros a ponto de surgir o argumento de que não assistir “Olhos Que Condenam” poderia ser um ato revolucionário. E é com este argumento que esta postagem tenta conversar.


Em seu artigo de 4 de julho deste ano, publicado na Folha de São Paulo, “Recusa a ver Olhos que Condenam pode ser um ato revolucionário”, o cineasta e roteirista Dodô Azevedo, constrói um argumento bastante problemático—e, ironicamente, contra-insurgente—para apoiar a decisão de alguns brasileiros em não assistir a minissérie da Netflix pelo fato da mesma ser “dolorosa” e, eventualmente, “alienante”.

Para chegar a tal conclusão, primeiro o autor lista a reação de algumas pessoas que não conseguiram assistir por completo a minissérie e outras que não pretendem assisti-la. Entre outros, Azevedo cita o artigo escrito pelo ator Lázaro Ramos no qual o ator revela que assistiu somente 20 minutos e declarou que assistir a minissérie “é tão dolorido porque tem muito a ver com o dia a dia da gente” e que “essa pauta pula todo o dia no colo da sociedade”, mas que se esforçou para assistir partes dos episódios. Um amigo negro de Azevedo, que também só conseguiu assistir os primeiros 20 minutos da minissérie, revelou: “Onde achei que encontraria um eco para as minhas questões, só encontrei propagação da dor”. A diretora negra Sabrina Fidalgo, que em rede social atestou que se “cansou das representações exclusivamente sofridas de negros”, também foi citada pelo autor. O próprio Azevedo revela que só conseguiu assistir 10 minutos da série, pois essa o fez reviver uma experiência no Central Park quando foi assaltado e, antes que ele descrevesse os 5 adolescentes para a polícia, esta já havia recolhido dezenas de jovens negros para que ele identificasse seus agressores—o que ele se recusou a fazer.

A partir disso, Azevedo questiona: “[S]e há quem esteja evitando assistir à série, como, então, ela é a mais vista na plataforma [Netflix]”? E, pela alta recepção da mesma, ele conclui que nós brasileiros “somos uma espécie fascinada sobre o sofrimento do outro” e, que os filmes “Tropa de Elite” e “Cidade de Deus”, mostram que “o sofrimento do negro nos eletriza em vez de nos traumatizar”. O autor, então, defende a produção de obras visuais que que não retratem exclusivamente o sofrimento dos negros seguindo a ancestralidade africana onde “não há uma história, um mito originário africano, que seja exclusivamente trágico—ou inteiramente uma festa”. E assim, o autor sugere que Ava DuVernay “contraria sua ancestralidade africana oferecendo somente trauma, e nenhuma proposta”.


A diretora Ava DuVernay e os “5 Inocentados” (Raymond Santana Jr., Kevin Richardson, Korey Wise, Antron Mccray, e Yusef Salaam) no lançamento mundial da minissérie da Netflix “Olhos Que Condenam” no Apollo Theater em 20 de maio de 2019, no Harlem, New York City. (Fotografia de Monica Schipper/Reprodução: Internet) 

Bem, certamente assistirá a minissérie quem decidir assistir, pois esta é uma escolha pessoal. Assim como também é uma escolha pessoal não assistir a minissérie até o final. Porém, nossa objeção ao texto de Dodô Azevedo começa com sua consideração única da opinião e reação de quem não assistiu e de quem se recusou a assistir a minissérie. Azevedo também desconsidera o fato de que a sociedade estadunidense, bem como a sociedade brasileira não são exclusivamente compostas pela ancestralidade africana, mas também pela europeia e outras ancestralidades. E isso é totalmente relevante quando o tema é racismo estrutural dentro de sociedades multiétnicas e multiculturais.

O caso dos 5 adolescentes não foi transformado em minissérie tendo exclusivamente os afro descendentes como público-alvo—e nem todos os produtores de “Olhos” são negros. Muito embora também espelhe a realidade brasileira, a série foi produzida nos Estados Unidos tendo todos daquele país como público alvo, mesmo que a Netflix a tenha lançado para quase mais de uma centena de países ao mesmo tempo. Ainda, as obras visuais que objetivam a “denúncia” de injustiças sociais têm significados diferentes nos Estados Unidos e no Brasil. E lá, a minissérie é uma obra de ativismo político/artístico, na qual a diretora usa sua ancestralidade afro-estadunidense (e não sua ancestralidade africana) para denunciar uma injustiça social construída dentro do contexto multiétnico dos Estados Unidos.

No Brasil, denúncias como as da série tendem a não ter um impacto concreto de mudança na sociedade. Apesar de todas as lutas e conquistas do movimento negro brasileiro, nem mesmo os horríveis crimes contra os negros que estampam as manchetes de jornais diariamente conseguem sensibilizar a sociedade à ações sociais e à políticas efetivas contra o racismo. A denúncia e a dor ficam no ar. E, talvez pelo fato da identidade afro-brasileira coletiva ser ainda bastante fragmentada, a obra “Olhos que Condenam” venha a causar a tal dor insuportável que nos leva a sofrer isoladamente, ou em pequenos grupos de amigos.

Ao contrário, nos Estados Unidos tal dor ao assistir a minissérie já nasce coletiva e, a partir disso, clama por ação. Como deixa claro o artigo de Danielle Scruggs de maio deste ano, “When They See Us’ Is More Than a Well-Crafted Miniseries, It’s a Call to Action” (“'Olhos Que Condenam' é Mais do Que Uma Minissérie Bem Feita, É Um Chamado Para a Ação”), que lista diversas situações semelhantes a dos cinco adolescentes do Harlem ocorridas nos Estados Unidos, e classifica a minissérie como um “chamado para que nos relembremos de que não podemos deixar que a história se repita”.

Por isso acreditamos que é bastante equivocado afirmar que em “Olhos” a diretora Ava DuVernay oferece “somente trauma, e nenhuma proposta”. No especial “Oprah Winfrey Presents When They See Us Now” (“Oprah Winfrey Apresenta Os Olhos Que Condenam”, também disponível na Netflix), Oprah conversa com o elenco da minissérie e também com as cinco vítimas reais do incidente de 1989. Neste especial, DuVernay diz que o filme foi feito para que os 5 inocentados não precisem mais contar repetitivamente suas experiências com a justiça e, assim, seguir com suas vidas. Ela acrescenta que o objetivo, a proposta da minissérie, sim, era criar algo que impregnasse com substância; criar algo que estimulasse uma discussão. Ela continua:

“A área do entretenimento serve para vários propósitos. Eu amo [os gêneros de] terror, romance, ação. Mas poder criar algo, com os meus colaboradores, que realmente vá levar as pessoas à ação, levar as pessoas a avaliarem o que elas pensam e como se comportam no mundo, foi o nosso objetivo”. (…) Mas o verdadeiro objetivo é a possibilidade de dizer, 'Vamos [Estados Unidos da] América, vamos mudar esse sistema'! Mas não é possível mudar aquilo que você não conhece. Então nós nos juntamos para apresentar a vocês algo que vocês talvez não saibam. Agora que vocês sabem, o quê vocês vão fazer? Como vocês vão mudar esse sistema? Esse é o nosso objetivo”.

A fala da diretora mostra que a obra tem uma proposta e que foi dirigida a todos (negros ou não) que não concordam com um sistema de justiça que coloca cinco jovens de cor, inocentes na prisão, sofrendo violência judicial e física. Não podemos esquecer o fato de que ação e mudança na sociedade estadunidense também significará o voto e a urna. Por exemplo: Donald Trump se prepara para sua reeleição no ano que vem. Quem assistiu toda a minissérie aprendeu que na época do incidente dos “5 do Central Park”, Trump fez uma campanha pública defendendo não só a prisão daqueles jovens, mas também a aplicação da pena de morte aos cinco. “Olhos Que Condenam” foi bastante crítica à pessoa do atual presidente que, na época do incidente ascendia no imaginário de Nova York. Vale notar que em 2016—ano em que Trump foi eleito e quatro anos após os “5” serem inocentados—ele voltou a afirmar a culpa dos cinco homens. A mobilização dirigida à próxima eleição presidencial em 2020, emerge como um dos vários objetivos da minissérie.

Obras-denúncia, como “Olhos Que Condenam” têm uma finalidade talvez um tanto quanto incompreendida no Brasil. Elas usam o drama, explorando ao máximo o sentimento e a dor para mobilizar emocionalmente a sociedade ao debate e à mudança—e talvez por isso “Olhos”, enquanto dramatização de evento real tenha causado muitíssimo mais comoção do que o documentário “The Central Park Five” (“Os Cinco do Central Park), de 2012, do aclamado documentarista Ken Burns e de sua filha Sarah Burns, que trata do mesmo tema.

Montagens com personagens de Olhos Que Condenam. (Imagem: Reprodução/Internet)

Azevedo nos classifica como uma espécie de observadores sádicos-sensíveis e, ao mesmo tempo, anestesiados ao assistir o sofrimento do outro. Ele talvez esteja corretíssimo. Vemos que neste argumento Azevedo revela que no Brasil este debate tende a se iniciar e terminar unicamente na discussão sobre o sentimento despertado pela obra. Uma discussão pública mais profunda não vai além. Já nos Estados Unidos o sentimento de dor se transforma em indignação e assim inicia-se as discussões de denúncias que levarão à mudanças, pois o tema da obra já faz parte de uma discussão maior, como hoje, por exemplo, a do movimento Black Lives Matter ("Vidas Negras São Importantes", em tradução livre).

Como DuVernay coloca, “não é possível mudar aquilo que você não conhece”. Os produtores de “Olhos que Condenam” não pretenderam oferecer novos caminhos e narrativas nessa produção; eles intencionalmente escolheram o gênero drama como obra-denúncia'de uma situação de injustiça.

E isso se chama ativismo artístico. E esta não é a primeira vez que Ava DuVernay questiona o sistema prisional estadunidense, alvo de seu ativismo. Em seu filme “Middle of Nowhere” (“No Meio do Nada”, em tradução livre) de 2012, a diretora também explorou o tema do encarceramento em massa de negros, como também o fez no aclamado documentário “A 13ª Emenda” (2016), também em parceria com a Netflix, que, entre vários outros, cita o caso dos rapazes do Central Park. Ao assistirmos a minissérie, fica claro que “Olhos” é um desdobramento do documentário de 2016.

Christie Marchese e Lillie Fleshler, em um artigo de 4 de julho, “When They See Us: What You Can Do About Mass Incarceration” (“Olhos Que Condenam: O quê Você Pode Fazer Sobre o Encarceramento em Massa”), pegam a onda da proposta da minissérie e oferecem possibilidades para quem quer fazer algo para mudar o sistema usando vários temas explorados na minissérie. Elas sugerem que o filme “Middle of Nowhere” de DuVernay foi em parte responsável pela redução das tarifas telefônicas nas penitenciárias estaduais. Os altos custos destas tarifas dificultam o contato dos detentos com a suas famílias e com seus advogados e, em “Olhos”, vemos a dificuldade da mãe de um dos jovens em arcar com as altíssimas tarifas telefônicas cobradas pela prisão para falar com seu filho mantido bem distante de sua residência. Marchese e Fleshler dizem que muitas prisões locais ainda cobram até 50 vezes mais caro do que as penitenciárias estaduais, e assim, elas oferecem o endereço eletrônico para que as pessoas assinem uma petição pela redução destas tarifas.

“Eu não mais aceito as coisas que eu não posso mudar. Estou mudando as coisas que eu não posso aceitar”. Dr. Angela Davis

Assim como Lázaro Ramos, nós aqui do blog lutamos para assistir toda a minissérie—seriamente à beira de prantos em alguns momentos—e assim foi possível notar como a mesma também grita à sociedade brasileira: Seja através da violenta abordagem policial; da prisão de negros inocentes através de um sistema policial e judicial violento e preconceituoso; seja pela forte corrente que prega a diminuição da maioridade penal; ou seja pelo ineficiente e superlotado sistema prisional e a difícil reintegração social de ex-detentos. E, não acidentalmente, violência policial e encarceramento em massa de jovens negros no Brasil são fenômenos que hoje ocorrem em paralelo a um projeto de deturpação e distorção do conceito de direitos humanos e de demonização e hostilização de agências, entidades e profissionais que lutam pela defesa destes direitos.

Concordamos com Dodô Azevedo quanto a necessidade de narrativas além do sofrimento do negro, mas não vemos produções como “Olhos” anulando qualquer possibilidade de coexistência desta com outras formas de narrativa e outros gêneros cinematográficos ou televisivos. E quando ele sugere que a recusa a assistir “Olhos” seja um ato revolucionário considerando a minissérie uma obra dolorosa e sem proposta, entendemos que no momento atual brasileiro (onde eventos reais como o retratado na minissérie são uma constante), Azevedo nos apresenta um discurso contraprodutivo a quem faz denúncias de injustiças sociais e reforça, acidentalmente, o crescente argumento que classifica qualquer denúncia de racismo como “vitimismo” ou, como o raso “mimimi”. Ainda não intencionalmente, tal discurso no Brasil pode privar o público em geral do conhecimento de uma experiência de injustiça real, em particular os não negros e não pobres que são bem menos propensos a pensar ou passar por tais experiências; e pode privar o público do sentimento de indignação, e tal privação, eventualmente, pode retardar a criação de canais de ação e mudanças no Brasil.

Assim como a recusa a pesquisar e a estudar a história da escravidão no Brasil, a recusa a assistir a minissérie não é um ato revolucionário. Mas assisti-la também não o é, caso o foco exclusivo continuar sendo colocado unicamente no sentimento causado pela minissérie e nada mais for aprendido ou feito em resposta aos temas abordados na obra—mesmo que essa resposta seja a simples mudança individual de postura, de entendimento e de comportamento em relação ao racismo e às injustiças sociais.

c&p

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