O Quê Albert Camus Diria Sobre a Nossa Reação ao Ebola?

Hysteria (“Histeria”), gravura do artista Cleon Peterson. Cleon descreve a maioria de seu trabalho como “um mundo cinzento, onde os infratores e os agentes da lei são um do mesmo; um mundo onde a ética foi abandonada em favor do direito pessoal de possuir”. (David & Goliart—Urban and Contemporary Art).(Reprodução/Internet; Streets of Beige)

Albert Camus, autor do livro “A Peste” (1947), é descrito pelo escritor Malcolm Jones como um “Epidemiologista Existencial” que refletiu sobre a condição humana diante a um mal sem face.

Um determinado vírus pode nos tornar menos humanos mesmo antes de sermos infectados? As reações racistas de hoje em relação ao Ebola, e o uso do nome da doença como insulto, evidenciam o fato de que uma epidemia pode nos afastar de nossa própria humanidade. O medo a uma epidemia pode nos afastar de nossa bondade e generosidade (inatas ou adquiridas) em relação ao próximo, assim como também pode nos trazer tanto a dúvida quanto a clareza sobre quem e o quê somos, e sobre as ideologias político-religiosas que seguimos.

No texto abaixo, publicado no dia 17 deste mês no site The Daily Beast, o escritor estadunidense Malcolm Jones, a partir do romance A Peste (1947), examina a reflexão existencial do seu autor, o escritor francês Albert Camus, sobre o duelo entre a condição humana e a crença ideológica como parte do quadro de sintomas de epidemias, e também de guerras.


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Albert Camus, O Nosso Epidemiologista Existencial

Artigo escrito por Malcolm Jones e publicado originalmente no site The Daily Beast em 17 de outubro de 2014.

O autor de um dos melhores livros já escritos sobre uma peste, Albert Camus tem muito a nos ensinar hoje sobre como abordar este mal inexplicável e sem face.

Se o vírus do ebola se espalhar neste país, será apenas uma questão de tempo até ouvirmos que a epidemia é a vontade de um Deus furioso inclinado a punir alguém em algum lugar por algum tipo de pecado. Não há nada de novo nisso: O Velho Testamento é uma coleção de estórias que vê as doenças e as epidemias como punição para um mau comportamento. Vá perguntar ao Faraó.

Até o século 18, escritores como Daniel Defoe ainda usavam o argumento de que a peste era uma punição divina. E mesmo em séculos mais recentes e mais seculares [não ligados a uma ordem religiosa], a ideia que persistiu na literatura e no mundo em geral era a de que o alastramento de uma doença como a Peste Negra foi, se não uma ordem divina, certamente nada menor do que a própria encarnação do mal.

E aí chega Albert Camus. Dois anos após o fim da Segunda Guerra Mundial ele publica “A Peste”, um romance no qual uma epidemia da Peste Negra consome Orã, cidade portuária argelina. As memórias da França de Vichy e a colaboração com os nazistas ainda eram frescas quando o romance surgiu (e elas nem eram ainda memórias quando Camus iniciou seu livro—elas eram realidade). Quando ele escreveu este livro, sua mente estava claramente absorta naquela grande crueldade pura e sem rosto. Mas o quê se deve ser notado, além de se observar nas páginas iniciais do livro onde a população de Orã fica indiferente ao perigo e depois se torna histérica quando o número de mortes aumenta, é que Camus não está interessado em culpar as vítimas.

Baseado nas evidências dos seus cadernos de anotações, Camus estudou assiduamente os escritos sobre a peste, de Tucídides a Boccaccio a Artaud e certamente à Bíblia. Mas sempre para o autor, a peste é antes de mais nada um fato científico, uma doença disseminada por rato e por pulgas que contaminam indiscriminadamente tanto os humanos bons quanto os humanos maus. Assim como a baleia branca do livro Moby-Dick, um dos romances favoritos de Camus, a peste é letal mas não tem raciocínio. Ela é uma força tão obtusa quanto mortal.

Camus não está interessado em explicar a peste bubônica. Ele se preocupa somente em explorar os seus efeitos sobre a população e, mais particularmente, em como ela responde à epidemia.

Ele se concentra em poucos personagens que inclui um médico, um burocrata, um criminoso, um padre, e um jornalista. Cada um deles tem uma posição diferente sobre a peste. O vigarista, por exemplo, dá boas vindas à quarentena que acompanha a epidemia por achar que esta o esconderá das autoridades. O padre vê a ação de Deus por trás da doença, uma visão que muda no decorrer do romance. Mas o personagem mais complicado, e dono dos olhos pelos quais vemos a maior parte da estória, é o Dr. Rieux, um homem da ciência e da cura que faz tudo o quê pode para salvar vidas e manter a morte à distância, mas ainda assim um homem que emerge no fim da estória com a sua generosidade gravemente ferida.

“Enquanto [Rieux] observa a multidão exuberante na noite em que [a quarentena é suspensa após um ano de confinamento e] os portões de Orã finalmente se abrem, ele percebe que ele sempre será um prisioneiro da peste”, escreve Germaine Bree em sua brilhante biografia crítica de Camus. “Para ele, a peste é, em essência, a clara consciência interior da presença acidental e transitória do homem sobre a terra, uma consciência que é fonte de todo o tormento metafísico, um tormento que nos olhos de Camus é uma das características de nosso tempo”.

Bree nos adverte a não vermos qualquer um dos personagens isoladamente. Eles são, afinal, “tipos” cuidadosamente selecionados, e ao isolá-los corremos o risco de entender o livro como uma alegoria. Em vez disso, ela encoraja a observação de como as pessoas conseguem ou não conseguem se conectar e ajudar umas as outras. Significativamente, Rieux encontra um terreno comum com todos os personagens, menos com o padre.

Em uma seção de suas anotações onde ele está esboçando ideias e temas para “A Peste”, Camus escreveu: “Medicina e religião: duas funções que parecem compatíveis. Mas hoje, quando tudo fica claro, percebe-se que elas são irreconciliáveis, e que se deve escolher entre o relativo e o absoluto. ‘Se eu acreditasse em Deus, eu não deveria cuidar da humanidade. Se eu tivesse a ideia de que a humanidade poderia ser curada, eu não deveria acreditar em Deus’”.

Ou como Germaine Bree diz, “Em lugar nenhum Camus retratou mais duramente a sua reação à ininteligibilidade total da condição do homem, nem o seu protesto contra a quantidade de sofrimento infligido em corpos e sentimentos humanos. Nenhuma religião, nenhuma ideologia, ele nos diz, pode justificar o espetáculo do sofrimento coletivo infligido sobre o homem”.

Assim como o “Um Diário do Ano da Peste” de Daniel Defoe, o romance de Camus foi escrito por um homem que nunca enfrentou uma peste real. Mas ele enfrentou a tuberculose e os nazistas, então ele sabia uma ou duas coisas sobre sofrimento. E o quê ele sabia ele compartilhou: que a vida, o aqui e agora, é tudo o que temos, nós todos sabemos disso, e devemos manter tudo isso sob nossa mais alta estima, ajudando uns aos outros da melhor maneira possível. Ou, como Dr. Rieux diz ao descrever o que sentia por viver sob o cerco da quarentena, “Assim, cada um de nós teve que se contentar em apenas viver o dia, sozinhos, sob a vasta indiferença do céu”.

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Sobre o autor: Malcolm Jones escreve sobre livros, música e fotografia para o The Daily Beast, onde ele já escreveu sobre assuntos que vão desde Abraham Lincoln até Robert Crumb. Ele é o autor de um livro de memórias, Little Boy Blues, e colaborou com o compositor Van Dyke Parks e o ilustrador Barry Moser em Jump!, uma releitura das estórias de Brer Rabbit.

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