Aranha: Herói? Não... Apenas um cidadão Negro Brasileiro Dignificado. (Foto: Ricardo Saibum/LANCE Press; Reprodução/Intenet) |
“Acho que esse circo todo já deu (inclusive o Aranha acabou virando um palhaço da mídia)... a menina errou, vai pagar por isso e o resto é exagero e conversinha pra boi dormir! Que tal procurarem novos assuntos??”. Elcio, leitor de São Paulo em comentário a uma postagem sobre o episódio do goleiro Aranha.
O goleiro Mário Lúcio Duarte Costa, conhecido como Aranha, está irado. O goleiro Aranha está revoltado. Uma reação normal em qualquer um que sofre agressão preconceituosa ou racista. Mas é aí que mora o perigo.
Negros e negras aprendem desde a mais tenra idade a não arrumar confusão, principalmente quando são depreciados em público e tratados como sub-humanos no dia-a-dia. Mas o goleiro preferiu tomar uma outra via. Uma que poucos têm culhões suficientes para seguir.
“Ele (o árbitro) veio falar que eu estava provocando a torcida. Quando me chamaram de macaco, de preto, bati no braço e disse que sou preto, sim”. Mário Lúcio Duarte Costa, goleiro do Santos, conhecido como Aranha.
As nossas preciosas normas sociais e culturais nunca aceitaram um negro com raiva, um negro irado, e (muito menos) um negro revoltado com o preconceito, com a discriminação, ou com a injúria racial pela qual ele ou ela passou, passa ou passará. Quem não aprende a se calar frente ao racismo torna-se, automaticamente, um sujeito mal quisto e visto como um indivíduo social e psicologicamente problemático. Um radical xiita. Um chato.
“O próximo passo é culpar o goleiro Aranha por não admitir ser um macaco?”. Título
irônico de um artigo de Kiko Nogueira, Diretor-adjunto do Diário do Centro do Mundo, jornalista e músico.
Os povos das nações que se beneficiaram da escravidão sabem muito bem daquela regra que dita que o negro deve se calar diante a situações de restrições sociais e de constrangimento racial para não sofrer pesadas represálias, regra que não morreu na história. Esta regra sobrevive no presente, de maneira nada, nada, nada sutil—vide os atos discriminatórios que ocorrem frequentemente no Brasil e não só nos gramados, mas que na maioria das vezes não se tornam públicos por não saírem do círculo familiar e/ou de amizades.
Tanto no Brasil colônia quanto no Brasil império, a punição dada ao negro revoltado era a chibata ou outro tipo de corretivo sádico. As várias revoltas e formações de quilombos não eram toleradas pelos Senhores do Brasil. Ainda, em uma dimensão maior deste medo e pânico do negro revoltado, temos o Haiti que até hoje paga o preço de ter se tornado a primeira nação onde uma revolução de escravos foi bem sucedida.
E foi o exemplo haitiano que fez com que no restante do mundo escravocrata uma maior e severa força de vigilância e de punição recaísse sobre os negros que cometessem qualquer ação de descontentamento em relação à sua condição de submissão total e irrestrita—do corpo, da alma, do seu caráter, da sua autoestima, ou seja, da sua própria condição de ser humano. Nenhum tipo de contestação ao sistema estabelecido poderia ser tolerado (ideologia também traduzida a qualquer tipo de mobilização social contra as classes dominantes, bem exemplificadas nestes últimos períodos de manifestações populares no Brasil, onde os manifestantes foram massivamente e eficazmente transformados em terroristas). Revolta significa mudança, e como tal sempre precisou ser combatida criando falsas verdades.
“Sabem porque o árbitro não ouviu nem presenciou [as ofensas]? Porque não houve. Foi tudo uma grande encenação do goleiro” (…) “Ele provocou e foi xingado, mas não com injúria racial. Isso já está bem claro”. Adalberto Preis, vice-presidente do Grêmio.
O Aranha reclamou, se queixou, e se revoltou por inteiro. Não somente em campo, mas desde após a tágica partida ele vem reafirmando sua condição de ser humano dignificado e de cidadão de um país que conta com legislação criminal específica para lidar com as tais agressões verbais que ele sofreu. Ao se revoltar, o goleiro se tornou o negro que sempre representou o perigo eminente na história da civilização brasileira, tornando-se, por tabela, o contraste drástico do negro exemplar simbolizado na figura do Rei Pelé.
“[C]omo piada é bom, mas a questão é complexa, é difícil, a menina virou uma vítima absurda, você tá invertendo a coisa. Cara, o Aranha se comportou como um escroto”. Eduardo Bueno, conhecido como Peninha, escritor gaúcho que é torcedor gremista fanático.
“[O quê a Patrícia fez] é coisa de adolescência, que quer fazer parte do grupo. A gente faz muita besteira na adolescência, quer se agrupar, e aí se agrupa errado.” Maitê Proença, atriz e pensionista.
A sociedade não gosta de um negro revoltado, principalmente em relação ao racismo. E por isso alguns insistirão em propagar a ideia de que tudo foi brincadeira de uma adolescente de 23 anos (!), ironicamente chamada Patrícia. Alguns dirão que foi tudo paixão pelo seu time de futebol—um esporte e um time, em particular, que na verdade tem uma uma tradição segregacionista: “O Grêmio FBPA, que apenas admitiu pela primeira vez um jogador negro em 1952, e ainda assim por se tratar de Tesourinha (um dos maiores talentos já vistos no Brasil, e recusado pelo rival SC Internacional)”; fato que parece também ser encontrado nos dias de hoje segundo denúncia feita anonimamente por um segurança do Grêmio em 2009.
“Temos 1,1 mil crianças nas nossas escolinhas, sendo que um terço é de cor”. Fábio Koff, presidente do Grêmio, afirmando que o clube é pioneiro no combate a segregação racial.
“[E]u só quero dizer o seguinte: o maior negro que existiu, talvez o maior ser humano, Nelson Mandela, que tenha existido, ficou 27 anos preso e quando saiu a primeira coisa que fez foi perdoar. Essa garota, Patrícia, se eu tivesse uma empresa, eu dava um emprego para ela agora.” Eduardo Bueno, conhecido como Peninha, escritor gaúcho que é torcedor gremista fanático.
O primeiro encontro entre Patrícia e o Goleiro Aranha durante a partida entre o Santos e o Grêmio na Arena do Grêmio no dia 28 de agosto de 2014 em Porto Alegre, pode ser considerado como desastroso. “O ato de racismo partiu da arquibancada posicionada atrás da meta defendida pelo goleiro”. (O Globo) (Foto de Roberto Vinicius/ELEVEN/Agência Estado; Reprodução/Internet) |
Patrícia pediu perdão e ele deu; depois ela quis encontrá-lo e abraçá-lo. Ele não achou necessário e disse não. Seria esta a resposta que esperavam de um negro? Seria este o um bom exemplo para todas as populações subjugadas social e economicamente no Brasil?
“O ‘perdão de boca’ a Patricia era necessário. Mas ele deu um golpe perfeito no racismo. Disse que perdoava a loira torcedora que o chamou de ‘macaco’. Só que não aceitaria encontrá-la. Não se submeteria ao teatro barato que a televisão estava tentando armar para ganhar alguns pontos a mais de Ibope. Aranha foi perfeito no complemento. Colocou as coisas nos seus devidos lugares”. Cosme Rímoli, colunista esportivo, Esportes R7.
Alguns comediantes ficariam sem material para suas piadas; torcedores teriam que chamar jogadores negros de corno ou outro termo ofensivo genérico durante as partidas de futebol; policiais teriam que preencher suas cotas de apreensão prendendo ladrões e assassinos; herdeira alcoólatra de fortuna de churrascaria Porcão teria que gritar mocreia, ao invés de “negrinha” na cara da vendedora que a flagrasse roubando mercadorias em shopping centers; haveriam mais negros na televisão, na política, na moda, e menos negros fora dos presídios; haveriam mais jovens negros vivos… Ou seja, seria o fim do Brasil como nós conhecemos hoje.
A atitude do Mário, o goleiro Aranha, merece reconhecimento positivo, o (por ele mesmo intitulado) “negão”, mas que também é irado, é revoltado, e com toda razão. Mas por quê com toda razão? Bem, vale repetir: Ser vítima de qualquer ato de racismo machuca bem fundo, e a dor não some e às vezes não diminui. Certamente muita gente sabe disso; claramente, outras fingem não saber; e outras muitas, seguindo as regras dos Senhores, simulam a recusa em compreender e aceitar a dor e a humilhação alheia (e dizem que não foi, não há racismo).
“Se a Patrícia for indiciada, vamos tentar mostrar que ela não é racista. Que estava tomada pela emoção, pela frustração de ver o time perdendo em casa por 2 a 0 em uma competição eliminatória”. Alexandre Rossato, advogado de Patrícia.
Excelente texto concordo totalmente com oque vc disse
ResponderExcluirValeu!
Excluir