À direita, “Dona Carmem revive o sofrimento de seus antepassados. Usando uma mordaça na boca, faz lembrar a venerada Escrava Anastácia. Assim ela comemora todos os anos o 13 de Maio”. Comunidade dos Arturos, Contagem, Minas Gerias. Foto de Evertrip (15 maio 2007) no Site Fotolog. À esquerda, Miguel Falabella em 2008 dando voz a sua criatividade no set de filmagens do seu primeiro filme ‘Polaróides Urbanas’ (Foto: Revista Época). |
Quando se fala de “representação” e “visibilidade” da população negra na mídia, isto também significa participação e controle dos meios de produção.
Em julho deste ano, a lendária filósofa, escritora, professora e ativista negra estadunidense Angela Davis, quando visitava o Brasil vocalizou diplomaticamente:
“Não posso falar com autoridade no Brasil, mas às vezes não é preciso ser especialista para perceber que alguma coisa está errada em um país cuja maioria é negra e a representação é majoritariamente branca. (…) Sempre assisto TV no Brasil para ver como o país se representa e a TV brasileira nunca permitiu que se pensasse que a população é majoritariamente negra”. (Portal EBC)
A observação de Angela é pertinente exatamente por ela ser uma negra dos Estados Unidos, nação que vem nos servindo como matriz para as mais variadas cópias. Desde o nosso vocabulário econômico, tecnológico, comercial e as mais variadas gírias, até as produções culturais—mais notadamente, a nossa televisão. Nós brasileiros somos fascinados pelos Estados Unidos, principalmente pela sua cultura. No entanto, ainda temos algumas reservas quando o assunto é relações raciais.
E é por isso que quando Angela Davis menciona a ausência do negro na “representação” da população brasileira na TV, torna-se difícil não pensar na mais recente polêmica envolvendo ativistas negras e a nova série da TV Globo Sexo e as Negas escrita por Miguel Falabella e baseada na série estadunidense Sex and The City (SATC) produzida pelo canal HBO entre 1998 a 2004.
Antes mesmo da estreia, a série fez com que o Conselho de Defesa dos Direitos do Negro, que é vinculado à Secretaria Especial da Promoção da Igualdade Racial, divulgasse na quinta dia 11 de setembro, uma moção de repúdio à série, por acreditar que esta “reforça estereótipos contra os quais se luta há anos” e preparava um abaixo-assinado para enviar à Globo”, como divulgou Patricia Kogut em sua coluna do jornal O Globo.
No centro da polêmica está o argumento de que a série estaria usando um velho estereótipo sexual para representar as mulheres negras da periferia. Mas não é somente isto. O título do seriado usa o termo ‘nêga’, que para as Blogueiras Negras contém um forte teor histórico de subjugação:
“Tal expressão transforma o corpo da mulher negra em peça, como eram chamados os escravizados, a ser consumida por uma sociedade racista. Nos coloca no lugar de mercadoria de segunda mão que não receberá o mesmo tratamento da carne branca e delicada, aquela que não é ‘suas nêgas’. A expressão é imbuída não apenas de pensamento escravocrata, mas também de machismo, cujas consequências sentimos na pele por sermos mulheres negras. Trata-se portanto de uma dupla violência que categoriza mulheres de acordo com sua cor de pele, qualidade que determinará qual o valor e o lugar que têm”.
Se compararmos a visibilidade na TV dos negros nos EUA e no Brasil, a diferença é incrível. Através de décadas de análises e críticas sobre a maneira pela qual os negros eram retratados em produções literárias, televisivas e cinematográficas, a televisão estadunidense hoje aposta na diversidade por uma razão óbvia: dá lucro.
Mais recentemente, a representação socialmente positiva do negro tem criado grandes sucessos na TV dos EUA. Em 2012, Shonda Rhimes (produtora negra e criadora da série de sucesso como Grey’s Anatomy) apostou na imagem da mulher negra profissional com a série Scandal (a qual já falamos aqui) Nesta série a atriz Kerry Washington interpreta Olivia Pope, uma profissional bem sucedida como gerenciadora de crises e uma figura central da política federal dos EUA, e que tem um “escandaloso” caso amoroso inter-racial com o Presidente dos EUA.
A série vem sendo considerada peça central na atual mudança na TV aberta dos EUA que hoje está apostando em produções com atores de cor nos papéis principais, como afirmou o artigo “Como o efeito ‘Scandal’ Mudou a televisão” do site Buzzfeed de maio deste ano.
A roteirista, cineasta, e produtora Shonda Rhimes
(Foto:
Chris Pizzello; Reprodução/Internet)
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Desta forma, Shonda Rhimes iniciou uma nova onda de representação da população negra na TV, ou como o jornal inglês The Independent colocou em setembro deste ano: “O fim do embranquecimento da TV: Shonda Rhimes está liderando o caminho para a diversidade racial na programação dos EUA”. O artigo desta manchete fala sobre as séries de TV que estrearão em breve nos EUA e que têm estrelas negras em papeis principais, tais como Halle Berry interpretando uma astronauta, e Viola Davis como a dona de uma grande firma de advocacia, esta última também de Shonda.
Já no Brasil, a fala negra ainda é depreciada e mantida bem distante da TV. Críticas e análises feitas pela comunidade negra são tratadas com desdém por aqueles que controlam os meios de produção.
Em relação as críticas que recebeu, Falabella em entrevista diz estar “achando boa essa polêmica”, pois “todos vão querer ver”. O autor, na mesma coluna de Patricia Kogut, afirma que a produção não “tem nada de preconceito” e que preconceito “é achar que mulheres de comunidades não podem ser representadas”. Falabella ainda disse que a ação de escrever sobre negros de comunidade “nunca é feita pela população real, sempre por quem não tem essa vivência. Conheço bem a vida na comunidade, conheço bem a Cidade Alta (onde a trama é ambientada)”. E ele ainda diz, “Isso é coisa de gente desocupada”.Falabella parece crer que o fato de conhecer uma comunidade seria o suficiente para criar a representação do cotidiano de mulheres negras. Desta forma, em uma sede de representar os negros na TV, ele cria sua própria representação da mulher negra, mesmo não tendo a vivência de uma. Ainda rebatendo as críticas, Falabella chegou a se comparar a um escravo fugitivo em uma postagem em seu perfil do Facebook: “Como é que saem por aí pedindo boicote ao programa, como os antigos capitães do mato que perseguiam seus irmãos fugidos?” (Diário do Centro do Mundo).
Esta não é a primeira vez que Sex and The City serve como base para produções sobre mulheres empoderadas fora dos EUA. Em Gana, por exemplo, An African City (“Uma Cidade Africana”), uma produção criada pela escritora Nicole Amarteifio, e veiculada online, se tornou um sucesso naquele país e vem sendo comentada positivamente no continente africano. Tanto ascríticas positivas e quanto as negativas sobre o programa resultam da maneira pela qual a representação tipicamente feita da mulher ganense, ou mesmo da mulher africana, foi radicalmente revertida.
Em entrevista para a revista online AfriPop em abril deste ano, Nicole Amarteifio diz de onde veio a ideia para sua série:
“Eu estava em Gana assistindo as reprises de Sex and the City e pensei, ‘Qual seria a versão ganense—a versão africana—deste programa?’ Eu curtia a forma aberta, a vulnerabilidade das personagens de SATC… e comecei a pensar sobre estas vulnerabilidades no contexto de uma ganense retornando ao continente. Também, eu estive engajada em desenvolvimento internacional por muitos anos e vi que se eu fosse embarcar neste projeto, ele deveria ser uma oportunidade para mudar a narrativa da mulher africana. A mulher africana não precisa sempre ser a face das campanhas anti-pobreza; ao invés, ela pode ser a face de tudo que é bonito, da moda, e moderno”.
Na experiência ganense, a revisão de SATC feita por uma escritora africana que viveu exilada em Londres e nos Estados Unidos até retornar ao seu país, parece seguir uma receita vital que vai além de um retrato diferente e positivo da mulher ganense, ou seja: ter controle sobre a produção.
Abaixo, o primeiro
episódio de An African City—infelizmente, somente em inglês.
Também em abril deste ano, Nicole explicou à CNN porque levar sua série para o Youtube e não para a televisão: “Adoro a ideia de não perder o controle criativo para um canal de TV. Eu queria superar limitações e não queria nenhum canal de TV me dizendo o contrário”. E ela acrescenta: “Quando a mídia dominante te ignora ou constantemente te diz que só há um tipo de você, você se sente invisível. An African City tem tudo a ver com a nossa visibilidade”.
É impossível negar o talento de Miguel Falabella assim como também é difícil crer que ele tivesse a clara intenção de retratar as mulheres negras de maneira negativa. Faltam personagens negros na TV brasileira e a série de Falabella certamente pode contribuir imensamente para diminuir esse vazio. Mas é dentro deste contexto que as críticas das mulheres ativistas negras não podem ser desconsideradas. Ao desconsiderar esta voz, além de mais uma vez deslegitimar a voz deste grupos, em um contexto corporativo mais específico, esta seria uma maneira de avsolutamente desconsiderar a opinião de parte do público.
Miguel Falabella e as atrizes Karin Hils, Corina Sabbas, Maria Bia e Lilian Valeska, protagonistas da série “Sexo e as Negas”. (Imagem: Reprodução Internet; Divulgação/TV Globo/VEJA) |
É claro que defender sua obra é algo louvável e admirável em um artista. Mas neste caso, Miguel Falabella ao responder as críticas dizendo que as tais são “coisa de gente desocupada”, acaba por reforçar a ideia de que o homem branco não somente sempre tem razão, mas como ele também detém a legitimidade sobre a voz feminina e sobre a voz do negro, neste caso, dentro e fora do contexto da criação literária.
Deslegitimar, descreditar, desdenhar, e desqualificar veementemente a voz da comunidade negra, queira-se ou não, goste-se ou não, ainda se configura enquanto um comportamento racista.
Falabella deveria ter entendido que ele (por absolutamente não ser uma mulher negra) deveria ouvir as críticas como forma de enriquecer o seu sincero interesse na promoção da visibilidade deste grupo, algo já provado em várias de suas obras para a TV—o quê também é admirável. Ou seja, ele deveria ouvir quem tem a “vivência” de ser mulher e de ser negra também como forma de elevar seu potencial literário.
Claramente, um autor masculino pode criar personagens femininos com maestria, mas, baseado no primeiro episódio de Sexo e as Negas, este não foi o caso. Principalmente se compararmos Falabella à escritora estadunidense Candace Bushnell e seu livro “Sex and The City” baseado em suas colunas no jornal The New York Observer, e que deu origem ao seriado da HBO, no qual ela atuou, com uma equipe, como escritora de 94 episódios. Ou seja, SATC carrega a visão feminina em sua essência, seus questionamentos, suas nuances, de uma maneira inovadora, e muito bem escrita. E por isso foi bem sucedida.
Por esta simples razão é que podemos perguntar: não há escritoras negras talentosas trabalhando na TV com as quais Falabella poderia estar colaborando? Por quê Falabella não tem uma negra em seu time de escritores? É importante entender que a representação do negro deve, obrigatoriamente, ir além da ação de visualizar negros na tela de TV. Tal representação deve também estar presente na construção do texto e em outras funções do processo de produção.
Para as negras brasileiras, o exemplo da produção ganense An African City, mostra que produções independentes sem a intervenção da mídia dominante pode ser um caminho para que as mulheres negras no Brasil possam ser representadas de uma forma mais positiva e real. Os passos que Nicole Amarteifio deu deveriam ser seguidos como exemplo de como obter o controle dos meios de produção; usar a Internet para dar visibilidade a voz da mulher negra brasileira também em obras audiovisuais.Já o exemplo estadunidense de Shonda Rhimes, por outro lado, mostra que as emissoras brasileiras deveriam se atualizar na representação de sua população, pois falta a fala negra nas produções. O estilo uníssono, ultrapassado, e mais que usado de produção, tanto de originais quanto de adaptações, se mostra altamente ineficiente e monótono para garantir diversidade e audiência e assim poder competir com os produtos originais estrangeiros.
E o primeiro episódio de Sexo e as Negas ‘representa’ de forma exemplar esta ineficiência.
Diferentemente de SATC, série marcada por um texto extremamente inteligente, bem construído, cheios dos vários significados íntimos e específicos da feminilidade e da cidade de Nova York, Sexo e as Negas tem um texto bem fraco. Falabella (e seu time) não utiliza a riqueza verbal do português coloquial, seguindo uma regra quase-formal limitando-se ao típico uso de parte do vocabulário popular (gírias e expressões, como a mais que batida na TV “me engana que eu gosto”) e alguns poucos palavrões—o mesmo português de qualquer comunidade pobre retratada em várias outras novelas da Globo. Algumas questões raciais são jogadas aqui e ali em formato cartilha—claro, para o público refletir.A narração extremamente didática, feita pelo próprio Falabella, dá a série um tom de filme antropológico amador dos anos 1940, fornecendo observações óbvias sobre a vida de 4 nativas feitas por alguém que observa uma favela, da qual ele parece não fazer parte. Tal narração contrasta fortemente com aquela feita com alta elegância, ironia, e inteligência em SATC.
Já a direção, esta não difere em nada da direção de qualquer novela, sem nenhuma novidade na narrativa visual, apresentando uma edição básica, e a construção de cenas em que o texto é quase que recitado pelos atores. A grande e boa diferença: atrizes e atores negros—o quê na verdade é muito bom.
Enquanto as produções estrangeiras elevam sua qualidade de produção, chegando a ultrapassar a qualidade de alguns produtos hollywoodianos, a TV brasileira se dedica e defende com afinco as suas fracas produções de visão intencionalmente limitada.
Fica claro que a TV brasileira deve se apressar para chegar ao século 21 e ouvir os vários segmentos do seu público.
Enquanto as produções estrangeiras elevam sua qualidade de produção, chegando a ultrapassar a qualidade de alguns produtos hollywoodianos, a TV brasileira se dedica e defende com afinco as suas fracas produções de visão intencionalmente limitada.
Fica claro que a TV brasileira deve se apressar para chegar ao século 21 e ouvir os vários segmentos do seu público.
Na verdade, em termos de danos sobre a imagem da mulher negra brasileira, o estrago já foi (e continua sendo) feito por algum tempo:
O ator Rodrigo Sant’anna interpreta ‘Adelaide’, personagem estereotipada do programa da Rede Globo de Televisão Zorra Total. Em 2012 a personagem Adelaide foi alvo de investigações “pela 19ª Promotoria de Investigação Penal, no Rio de Janeiro. De acordo com a promotora Christiane Monnerat, que cuida do caso, várias denúncias de cidadãos e ONGs foram recebidas pela Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial, órgão ligado à Presidência da República, que notificou a promotoria sobre os possíveis ‘estereótipos racistas’ da personagem”. Lembrando: Adelaide continua no ar. (Momento Verdadeiro) Foto: Reprodução/Internet; Divulgação Rede Globo |
Mulheres negras nos EUA e na África sabem como querem se ver representadas e assim se representam. No Brasil, a “fala negra” é abafada por falas belas que se auto-legitimam como representantes das mulheres negras.
O racismo não está contido exatamente na série Sexo e as Negas, mas sim na estrutura de produção televisiva brasileira, e é isso que esta nova série acaba ilustrando: o velho. Infelizmente ainda teremos que consumir as produções estrangeiras se quisermos ver diversidade nas produções televisivas.
c&p
Quanto patrulhamento sobre os meios de comunicação. Filho, não gostou? Muda de Canal.
ResponderExcluirAgora, não venha cagar regra do que pode ou não ser exibido na televisão.
Esse tipo de patrulhamento esquedopata que torna as emissoras brasileiras as mais VASILINA em produção de conteúdo sem qualidade e infantiloide. Cresce amigo!
Não se pode mais fazer FICÇÃO sem que punhado de bloggers sem noção começam a cagar regra...........
Esta não é uma resposta ao comentário acima, mas sim, publicamos tal comentário pois o mesmo serve como um ótimo exemplo de porquê usamos o sistema de moderação de comentários no nosso Blog. Ou seja, este é um exemplo perfeito de um comentário que geralmente é “reprovado” para publicação, porque:
Excluira) Foi escrito por alguém que claramente leu “somente” o título da postagem, e daí tirou conclusões sobre todo o texto; ou
b) Foi escrito por alguém que leu todo o texto e clara e óbviamente “não entendeu” o argumento principal que o mesmo apresenta;
c) Um outro motivo “claro”, é o tom desproporcionalmente agressivo que o leitor toma para acentuar sua crítica—fator que automaticamente desqualifica o comentário para publicação.
Todos os comentário que seguem as regras de “boas maneira” têm sido publicados e na maioria são respondidos. Todos podem discordar e concordar, mas sempre usando a educação que nossos pais e mães e responsáveis e professores suaram muito para nos dar.
Equipe Cúlti&Pópi
Problema no Brasil é que quem critica globo, record, sbt, band e etc... não se lembra que existe um movimento para consumir produções de internet. Já tem bastante tempo que não possuo globo em casa, não que eu não queira, mas não faz falta. Quando quero me entreter busco na internet em vídeos, blogs, e publicações diversas, outros canais e por aí vai. O Porta dos fundos, canal do youtube que não gosto muito, utiliza a internet justamente para fugir das formas rígidas da globo, que em vinte anos de teledramaturgia não evoluiu em nada, apenas na potencia dos equipamentos, a qualidade das estórias contadas caíram a cada ano. O que a população negra que quer ser representada está esperando para lançar um canal só de negros na internet? Se isso é realmente necessário e se for garantia de sucesso logo a globo ou outro canal se interessa em absorver o programa. É muita reclamação! Porta dos fundos, parafernalha estão aí para mostrar outro caminho.
ResponderExcluirIsso mesmo Anônimo, o Porta dos Fundos e outros canais de brasileiros do Youtube são um bom exemplo de como produções independentes se tornaram um meio de veicular idéias sem a interferência corporativa. Porém, também os canais do Youtube e outros do tipo (mesmo sendo uma boa alternativa contra as fórmulas conhecidas de produção da mídia dominante no mercado), não estão imunes a críticas (sejam estas negativas ou positivas).
ExcluirObrigado por seu comentário!