“The Rich Man's Frug” — O brilho de Suzanne Charny na rica coreografia de Bob Fosse

A atriz e dançarina Suzanne Charny (no centro) em foto estática do número musical “The Rich Mans Frug”, cena do filme “Sweet Charity” (“Charity, Meu Amor”) de 1969. (Imagem: Internet/Universal Pictures)

 “The Rich Man's Frug”, que pode ser traduzida livremente como 'A Dança do Grã-fino', é um número musical do filme “Sweet Charity” (“Charity, Meu Amor”) de 1969, o primeiro filme de Bob Fosse. Embora Shirley MacLaine seja a estrela do filme, quem brilha nesse número é a bem pouco conhecida atriz e dançarina Suzanne Charny.

Suzanne Charny não se tornou uma grande estrela de Hollywood. Suzanne tampouco se tornou um rosto bem conhecido da televisão. Entretanto, sua presença encantadora no número musical do filme “Charity, Meu Amor” ainda hoje causa um imenso deslumbre. Naqueles poucos minutos em que Suzanne encarna a personagem esnobe, indiferente, dominadora, forte, misteriosa e sedutora, ela é uma deusa do estilo dos anos 60 e a personificação da linguagem coreográfica de Fosse.

 
O Número Musical “The Rich Man's Frug” do filme “Charity, Meu Amor” (1969), dirigido por Bob Fosse. (©Universal Pictures)

Na cena — que inspirou Beyoncé para um de seus vídeos —, Suzanne é absolutamente tudo. O número transformou a então atriz e bailarina em uma espécie de símbolo da complexidade coreográfica de Bob Fosse e, desde então, quem ousa interpretar aquela personagem será inevitavelmente comparada à Suzanne — dos pés à cabeça, literalmente.

“Sweet Charity” (“Charity, Meu Amor”) (1969)
“Charity, Meu Amor” é uma adaptação do clássico “Le Notti di Cabiria” (Noites de Cabíria), filme de 1957 do mestre italiano Federico Fellini (1920–1993) que em 1957 recebeu o Palm d'or em Cannes pelo filme. (O roteiro de Fellini, Ennio Flaiano e Tullio Pinelli, contou com Pier Paolo Pasolini como colaborador.) Cabíria, a personagem principal, é interpretada pela brilhante estrela do cinema italiano Giulietta Masina (1921—1994), esposa e musa de Fellini, que em 1957 em Cannes foi eleita Melhor Atriz por sua interpretação no filme. “Le Notti di Cabiria” recebeu o Oscar de Melhor Filme estrangeiro em 1958.

Em 1966, Bob Fosse leva sua adaptação musical do filme de Fellini, com o título “Sweet Charity”, à Broadway no palco do Palace Theatre, ficando em cartaz de janeiro de 1966 a julho de 1967. Estrelando no papel de Charity (Caridade) esteve a icônica dançarina, coreógrafa e atriz da Broadway Gwen Verdon (1925–2000), esposa, musa e colaboradora de Fosse. Com libreto escrito pelo veterano dramaturgo e roteirista novaiorquino Neil Simon (1927–2018), música de Cy Coleman (1929—2004) e letras de Dorothy Fields (1904—1974), e dirigido e coreografado por Bob, “Sweet Charity” recebeu o Prêmio Tony na categoria Melhor Coreografia.

Gwen Verdon na Capa do Programa de “Sweet Charity” no Palace Theatre, New York; maio, 1967. (Imagem: Playbill)

No filme de Fellini, Cabíria é uma prostituta com um coração de ouro que vaga pelas ruas de Roma sonhando encontrar o amor de sua vida, deparando-se somente com desilusões, sem perder a fé no amor. Já na adaptação de Bob Fosse, Charity é uma ingênua dançarina de aluguel (“taxi dancer”) em um salão de dança de baixa categoria, que também espera encontrar o amor de sua vida entre várias decepções.
 
Cena do filme “Le Notti di Cabiria” (1957). Giulietta Masina como Cabíria, de costas numa noite chuvosa nas ruas de Roma. (Imagem: Internet)

O estúdio Universal Pictures adquiriu os direitos para a adaptação cinematográfica de “Sweet Charity”, convidando Fosse para ser o diretor — que na década anterior já havia coreografado alguns musicais Hollywoodianos. O filme estreia em 1969 com Shirley MacLaine (1934—) no papel de Charity, e Bob Fosse faz seu debut como diretor de cinema. Gwen Verdon, mesmo não creditada no filme, atuou como assistente de coreografia. Peter Stone escreveu o roteiro baseado no texto de Neil Simon, e Robert Surtees assinou a cinematografia.

Mesmo com 3 indicações ao Oscar de 1970 (Cenografia; Figurino e Melhor Música e Partitura para Filme Musical), “Sweet Charity” não teve um bom retorno financeiro — com um orçamento de 20 milhões de dólares, o filme obteve apenas 8 milhões em bilheteria. E as críticas foram mistas. Vários elogiaram a atuação de Shirley MacLaine e a abordagem cinematográfica de Bob Fosse para o seu musical. Outros consideraram o filme muito longo, consideraram a música como ineficaz, e a estória como não engajadora. Em 2 abril de 1969, o crítico Vincent Canby do The New York Times foi particularmente ácido em sua avaliação depreciando o filme como “tão inflado que se tornou um outro filme máximo: um longo, barulhento e, finalmente, uma fraca imitação do material original”. Nem mesmo — imagina só! — Shirley MacLaine escapou da escrita ferina de Canby:

“A Srta. MacLaine pode às vezes ser muito cômica, mas ela é uma dançarina maçante e disforme, uma cantora comum e uma atriz incapaz de mostrar — externamente — ansiedades internas, engraçadas e contraditórias”.

Charity, o Cult
Seguindo a boa tradição de elevação de uma obra cinematográfica ao status de cult, o tempo fez seu trabalho com “Charity”. Redescoberto, hoje o filme é visto bem mais favoravelmente. Atualmente a avaliação do filme no site Rotten Tomatoes é de 83 para os críticos e 73 para o público; e no site imdb sua avaliação é de 7,0. Talvez a coreografia seja a grande responsável por esta redescoberta e reavaliação do filme, já que além de “The Rich Man's Frug”, a produção também contém outros números musicais de Fosse tidos como clássicos da Broadway, como “Big Spender” (O Esbanjador, em tradução livre) — destacada logo no início da minissérie biográfica “Fosse/Verdon” (2019) da FX, protagonizada por Sam Rockwell (Bob) e Michelle Williams (Gwen), produção que obteve 17 indicações ao Emmy.

Mas a atual celebração de “Charity, Meu Amor” se deve principalmente ao fato de que o filme faz parte do legado de Bob Fosse. Venerado no teatro e no cinema, Bob foi o primeiro e até hoje o único artista a receber no mesmo ano, 1973, os três grandes prêmios: um Oscar (Cabaret); um Emmy (Liza with a Z); e um Tony (Pippin). Ele dirigiu 5 filmes e por 3 foi indicado ao Oscar de Melhor Diretor. Ele também ganhou o Palm d'Or em Cannes por “All That Jazz” (O Show Deve Continuar) (1979) ; um BAFTA por “Cabaret” (1972); e oito Tonys de melhor coreografia e um por direção no teatro. Ainda, “Sweet Charity” conta com a presença de artistas lendários da Broadway e de Hollywood, como a atriz, cantora e bailarina Chita Rivera (1933—), outra estrela da Broadway; o ator (teatro, cinema e televisão), cantor e dançarino Ben Vereen (1946—), grande colaborador de Fosse; e o multitalentoso e fenomenal Sammy Davis Jr. (1925—1990).

Poster Alemão do filme “Sweet Charity”. (Imagem: Internet)

Certamente, o filme contém um teor de enorme interesse. Ele atrai os fãs de Shirley MacLaine e os fãs de Bob Fosse. O filme também atrai coreógrafos e dançarinos, assim como os aficionados pelo teatro musical. Atrai cinéfilos em geral e os admiradores do estilo dos anos 60. Vale lembrar que “The Rich Man's Frug” foi a primeira coreografia de Fosse canabalizada por Beyoncé para a coreografia de seu vídeo “Get Me Bodied” de 2007 (“Mexican Breakfast”, Café da Manhã Mexicano, outra coreografia de Fosse, inspirou Beyoncé na coreografia do famoso vídeo “Single Ladies” de 2008.)

“The Rich Man's Frug”
Em um episódio da trama — que é basicamente o mesmo em ambos os filmes —, por um mero acaso, próxima à porta de entrada de uma boate, Charity avista o astro do cinema italiano Vittorio Vitale, interpretado pelo galante ator Ricardo Montalbán (1920–2009), discutindo e terminando seu namoro com Úrsula, interpretada por Barbara Bouchet (1943—), que se vai deixando Vittorio na rua. Vittorio nota que Charity o observa e a convida para lhe acompanhar. Os dois, então, entram na boate grã-fina que é frequentada por um excêntrico grupo da alta sociedade. E é nequela boate que o número “The Rich Man's Frug” é realizado.

Suzanne Charny, A 'Garota do Rabo de Cavalo'
A atriz, dançarina e hoje escultora, Suzanne Charny (1944—) é a estrela do número musical “The Rich Man's Frug”. Suzanne fez o mesmo papel na Broadway em 1966 para depois reprisá-lo no cinema em 1969. Porém, bem pouco se sabe sobre ela, fato que — mesmo não intencionalmente — cria uma certa aura de mistéio sobre a artista.

Sabe-se que de 1965 a 1966 Suzanne fez parte do corpo de dança do programa de variedades “Hullabaloo” da rede estadunidense de televisão NBC. Após “Sweety Chatiry” Suzanne fez algumas participações em séries famosas da televisão dos anos 70, como “Starsky & Hutch”, “Kojak”, “O Homem de Seis Milhões de Dólares” e “O Incrível Hulk”, e em outras séries na década seguinte. Ela atuou em filmes para a televisão e em alguns outros para o cinema atuando em pequenos papéis até os anos 80. O site imdb apresenta uma citação da artista na qual ela fala de sua carreira como atriz:

“Eu não desisiti da atuação. A atuação é que desiste de você. Cada vez mais surgem menos papéis. Ou eu fazia uma participação especial ou coestrelava, e eu não queria papéis pequenos que exigiam somente um ou dois dias de filmagens, então em retornei ao teatro. É difícil quando uma atriz envelhece e não há mais tantos papéis disponíveis”.

O perfil de Suzzane faz parte do livro “Glamour Girls of Sixties Hollywood: Seventy-Five Profiles” (Garotas Glamurosas da Hollywood dos Anos Sessenta: Setenta e cinco perfis) de 2007 de autoria de Tom Lisanti. O livro apresenta comentários da própria Suzanne sobre seus papéis, inclusive, é claro, o da “garota do 'Frug'”. Segundo a atriz, a Universal Pictures tinha em mente uma outra dançarina para o papél, mas Gwen Verdon e Bob Fosse insistiram fortemente que fosse ela. Ela conta que a coreografia foi basicamente a mesma apresentada no palco e que o rabo de cavalo falso que ela usou no número era tão pesado que causou uma lesão no seu couro cabeludo resultando em uma infecção. Suzanne ainda revela que Bob Fosse insistiu que ela usasse sapatos que só estavam disponíveis em um número menor ao tamanho de seus pés. Ela diz:

“Entre minha cabeça e meus pés, eu estava em agonia! Mas é melhor estar maravilhosa do que confortável”.

Após a televisão e o cinema, Suzanne retornou ao teatro por um tempo até se entregar a uma outra forma de expressão artística. Inspirando-se nas esculturas que seu pai fazia nas areias da praia de Brighton Beach em Brooklyn, onde ela cresceu, Suzanne continua ligada às artes dedicando-se à escultura. Além de nos remeter à icônica coreografia de Fosse, a peça abaixo, “The Ponnytail Girl” (A garota de rabo de cavalo), deixa bem claro que a paixão de Suzanne pela dança continua viva.

“The Ponnytail Girl”, ©Suzanne Charny (Imagem: Reprodução/Internet: Charny Sculptures.

Como informa Sheri Leblanc em seu blógue Musings, em 2004, Suzanne aos 60 anos foi reconhecida pela Sociedade de Dançarinos Profissionais dos Estados Unidos por sua contribuição à dança. Leblanc dá a Suzanne Charny o título de “Deusa Cult do Cinema” por sua atuação em “The Rich Man's Frug”. Justificando o título, Leblanc afirma que

“durante aqueles poucos minutos [Suzanne] é a personificação do 'maneiro' [, do descolado], canalizando perfeitamente, com um verdadeiro estilo icônico, a excentricidade um tanto surreal da mente coreográfica audaz de Fosse”.

“The Rich Man's Frug”, Coreografia em três atos
O termo “Frug” denominou um dos várias estilos de dança de vida curta, que surgiram nos meados da década de 1960 que derivaram do 'Twist' e de outros passo da moda. “The Rich Man's Frug” de Fosse é dividida em 3 partes: “The Aloof” (o indiferente, o esnobe); “The Heavyweight” (o peso pesado); e “The Big Finish” (o grande final).

Na primeira parte, “The Aloof”, vemos a habilidade de Fosse em combinar comentário social, humor e movimentos inovadores com cenários, maquiagem e figurinos excêntricos e alusivos ao estilo de Fellini. E temos, é claro, a absolutamente fascinante Suzanne vestindo um pequeno vestido preto e longas luvas brancas que alongam os seus braços, uma face de expressão indiferente — como uma esnobe incapaz de expressar emoções reais —, e um longo rabo de cavalo utilizado como uma extensão hipnotizante de seu corpo em momentos precisos da coreografia.

O Poderoso Rabo de Cavalo. (Imagem: Internet)
 
Ela entra com a pélvis impulsionada para a frente jogando a parte superior de seu corpo para trás. “The Aloof” (O Esnobe) mostra o uso que Fosse fez dos 'pequenos isolamentos', como na parte em que somente poucas dançarinas fazem a postura do número 4 (uma perna cruzada sobre o joelho) e somente giram o pulso e o tornozelo direitos enquanto os outros dançarinos fazem outros movimentos isoladamente. Também vemos os pequenos movimentos do pescoço, os movimentos de pélvis e cintura e, e as poses paradas onde os dançarinos simulam estátuas.
 
Olhos gráficos fellianianos. (Imagem: Internet)

Uma característica das coreografias de Fosse pode ser definida como 'menos é mais', onde o grande desafio dos dançarinos é executar movimentos pequenos e precisos impecavelmente cronometrados com a música. Fosse descobriu que pequenos movimentos podem capturar a atenção da plateia, como os pequenos movimento do pulso. E vemos isso em “The Heavyweight” (O Peso Pesado), a 2a. parte da coreografia onde os dançarinos já se encontram um pouco mais livres da coreografia restrita anterior, e que constrói um tipo de 'batalha dos sexos' que no final, Suzanne Charny nocauteia todos os outros dançarinos alinhados em uma longa fila.

Na 3a. e última parte da coreografia, “The Big Finale” (O Grande Final), todos os dançarinos estão completamente livres dos padrões das duas primeiras partes da coreografia, alternando entre o movimento controlado de grupo e a interpretações solos totalmente aleatórias. Nesta parte temos Ben Vereen liderando a cena com um canto de chamada e reposta e saltos tesoura aberta. A cena tem um elemento psicodélico e rebelde, um show de luzes e cores. Em seu final, a 3a. Parte termina com o retorno da coreografia de movimentos pequenos, contidos, os giros de pulsos e, é claro, o final com a mão aberta (mão de jazz) parada — recurso bastante usado por Fosse que foi um grande entusiasta da Jazz Hands e o usou em quase todas as suas coreografias.


“The Rich Man's Frug” é uma coreografia simples, sensual e, ao estilo Fosse, bastante complexa. Nela temos vários elementos que caracterizam o estilo altamente distinto e inovador do coreógrafo, na qual ele faz uma homenagem à estética felliniana. E é nessa coreografia que a Garota do Rabo de Cavalo Suzanne Charny se transformou em um símbolo do vintage dos anos 60, consequentemete consagrando-a em uma 'Deusa Cult do Cinema'.

c&p

Em 2006, com produção de Charles Möeller e Claudio Botelho e com Cláudia Raia no papel principal, “Sweet Charity” estreou em São Paulo no palco do Credicard Hall e, em 2007 foi apresentado no Rio de Janeiro, no teatro Vivo Rio. Até a data da publicação deste nosso artigo, um vídeo da versão brasileira do musical com Cláudia Raia estave disponível na íntegra no Youtube; clique aqui para assistir.


Fontes:

. "The Rich Man's Frug" by Bob Fosse: A Short Dance History Lesson, Move Your Story.

. Suzanne Charney: Golden Girl of Fosse’s Choreography. Musing

. Sweet Charity, Wikipedia.

. Bewitched Wiki – Fandom



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