O mais novo exemplo é a atriz Betty Gabriel, no papel da jovem empregada doméstica Georgina no filme “Corra!”, em uma cena bem curta, mostra que é uma atriz eficaz fazendo uso aprimorado e comovente do elemento de tensão central do filme: o “Local Submerso”.
O Filme “Corra!” foi um dos grandes lançamentos de 2017, e ainda em 2018 continuou entre os melhores filmes lançados recentemente, recebendo 4 indicações ao Oscar. Dentre os méritos do diretor e roteirista do filme (Oscar de Melhor Roteiro Original), o comediante Jordan Peele, o mais significativo foi o de levantar o debate sobre o racismo dentro do gênero do filme de terror/horror. E isso não significou em diminuir, trivializar, banalizar ou infantilizar tal debate. Pelo contrário, o filme que começa narrando a estória de um rapaz negro, Chris (Daniel Kaluuya), que vai ser apresentado à família de Rose (Allison Williams), sua namorada branca, durante um final de semana longe da cidade, toma um sério contorno de mistério, suspense e de terror, todo situado exclusivamente no racismo.
Previsivelmente, dentro da atual política estadunidense de Donald Trump—extraviada por supremacistas brancos—, o filme conseguiu emplacar o termo Sunken place (que em tradução literal significaria “local submerso”, e traduzido para o cinema como “afundar no esquecimento”) no vocabulário popular para se referir ao local de tensão e de horror onde, silenciados, os negros se encontram historicamente na sociedade. Em março do ano passado, o diretor do filme, Jordan Peele, usou o o Twitter duas vezes para explicar o significado do “local submerso”: “Todos nós estamos no Local Submerso” (16 de março); “Somos marginalizados. Não importa o quão forte nós gritemos, o sistema nos silencia” (17 de março).
Hoje nos Estados Unidos o termo se populariza. A definição número 1 do Urban Dictionary diz:
Sunken place, desta forma, se torna o antônimo do termo/gíria woke, que segundo algumas das definições de topo do Urban Dictionary se refere a estar “acordado”, antenado ao que está rolando em termos políticos e de justiça social.
“Quando alguém se encontra em um estado perpétuo de letargia em relação a injustiça e opressão sistemática e idiossincrática relacionada à raça, ou seja, a antítese de estar woke. Especialmente quando uma pessoa de cor não pode ou se recusa a enxergar”.
Sunken place, desta forma, se torna o antônimo do termo/gíria woke, que segundo algumas das definições de topo do Urban Dictionary se refere a estar “acordado”, antenado ao que está rolando em termos políticos e de justiça social.
É importante manter em mente que todo o filme, e consequentemente a atuação de Betty Gabriel como Georgina, se situa exatamente dentro do contexto do 'sunken place', o “local submerso”.
Atenção: O trecho abaixo pode servir de “estraga prazeres” para quem ainda não assistiu o filme.
No filme, este “local submerso” é um estado mental para onde, através de hipnose, são levadas as mentes dos negros que são raptados por membros de uma família branca de elite para que seus corpos possam ser leiloados e depois habitados, através de implante cerebral, pelas mentes de brancos abastados. Os corpos, então, passam a ter duas mentes: uma branca ativa/dominante, e a outra negra submersa/submissa. Os negros no estado submerso perdem todo controle sobre seus corpos e passam a assistir o mundo através de uma janela enquanto afundam em um vácuo.
Tudo indica que não há saída do local submerso. Porém, em um dado momento do filme, durante uma festa com vários amigos da família da namorada do Chris, um outro e único convidado negro, de comportamento e fala refinada, volta a si pelo disparar do flash da câmera do telefone celular quando Chris tira uma foto dele.
Mas é na cena interpretada por Betty Gabriel no papel de Georgina (uma personagem jovem, negra e lésbica, e suposta empregada da família branca) que o “local submerso”, como local assombroso aos negros, emerge em plena evidência.
A Cena.
Georgina surge inesperadamente na porta do quarto de Chris, o protagonista do filme—que está no processo de ser levado para o local submerso—, após ele comentar com Rose, a namorada, que alguém desconectou o celular dele da tomada, talvez Georgina enquanto limpava o quarto. Georgina procura Chris para se desculpar e esclarecer o ocorrido.
Pego de surpresa, Chris diz a ela que está tudo bem e também revela sentir-se “nervoso rodeado por muita gente branca”. Interessantemente, tal revelação de Chris funciona quase como o flash do seu telefone celular, pois algo indica que a consciência negra submersa dentro do cérebro de Georgina tenta vir à tona tocada pelas palavras de Chris. Assim se inicia uma intensa batalha interna com a consciência branca dominante. O rosto de Georgina torna-se, então, o palco onde esta batalha é travada.
Um silêncio enche o ar e o constante sorriso anterior desaparece; uma expressão de aflição surge para logo dar lugar a um rápido franzido da testa e um olhar triste, e balbuciando, ela tenta dizer algo, como um pedido de ajuda ou um alerta. Mas, Georgina se restabelece e volta a exibir o mesmo sorriso bem composto em seu rosto. O sorriso é manchado por uma enorme lágrima que aflora em seu olho e desce deixando um rastro molhado até sua boca. O sorriso se torna uma pequena e contida gargalhada que carrega uma pitada de arrogância para logo depois apresentar um rápido traço pungente de dor.
E é aqui que surge a—já lendária—repetição calma e contínua da palavra “não”, que se inicia com um leve tom de comando para se transformar em um espécie de acalando condescendente destinado a fazer adormecer a consciência negra; colocar a consciência negra de volta a seu lugar. Aparentando estar completamente restaurada, Georgina recupera a linguagem, a dicção, e a compostura de uma dama refinada, e branca, para afirmar que ela não compartilha do sentimento dele, já que a experiência dela ao redor de brancos é diferente, e que naquela casa ela é tratada como família. Com o mesmo sorriso, ela, altiva, se vira e sai do quarto em passos firmes e rápidos, deixando Chris sozinho e completamente atordoado—assim como os que assistem o filme. Fim da Cena.
Betty Gabriel estreou no cinema em um curta de 2009, mas nesta cena de “Corra!”, de aproximadamente 2 minutos e 25 segundos, ela, além de provar seu enorme talento, prova também estar pronta para projetos maiores e desafiadores (no caso de haver algo mais desafiador do que Georgina). No papel de Georgina, ela traduz habilidosamente, com o uso de expressões sutis, a agonia e o desespero de “afundar no esquecimento” e permanecer oculta e silenciada no “local submerso”.
Mas como a atriz conseguiu uma atuação tão perfeita e altamente precisa? Bem, durante uma entrevista no tapete vermelho do Oscar para o portal E! Online, Betty diz que um adereço foi um dos traços mais interessantemente complicados de Georgina e que a ajudou na montagem da personagem:
Na mesma entrevista, Bradley Whitford, ator que interpreta Dean Armitage (o pai da namorada do Chris), declarou: “Betty realizou o que eu penso ser uma das maiores tomadas na história do cinema onde ela está interpretando 20 coisas diferentes. Aquela personagem é a definição de 'pessoa difícil'”.
Mesmo somente tendo recebido um prêmio do Women Film Critics Circle Awards por seu desempenho em “Corra!”, a cena de Georgina conversando com Chris entrou para o rol das melhores cenas curtas e mais memoráveis do cinema. Pois é... Ela merecia pelo menos uma indicação ao Oscar. (Muito embora tanto a versão legendada como a dublada não consigam fazer jus às nunces linguísticas do roteiro—assim como o próprio título em português que deveria ter sido “Cai Fora!” e não “Corra!”—, a cena dublada pode ser vista aqui.
Cena de Betty Gabriel e Daniel Kaluuya. A cena está toda em inglês, já que infelizmente não conseguimos encontrar uma versão legendada. O link de uma versão dublada da cena se encontra no fim desta postagem.
Ela age e soa como uma dama fina, bem educada e, pelo vocabulário, uma senhora branca com dificuldade de entender termos populares usados pelos negros, como no momento em que Chris lhe diz que não pretendia “snitch” e “to rat out” (que significam algo como “caguetar”, “entregar”, “X9”, ou “traíra”) quando a citou na conversa que teve com Rose sobre o telefone fora da tomada; ou seja, um negro denunciando uma negra. Georgina expressa dúvida sobre o significado dos termos. Mas após pensar por uns segundos ela exclama, “tattle-tale” (termo inglês um tanto infantil para “linguarudo”, “dedo-duro”) com o ar de quem finalmente compreendeu o que Chris dizia. E logo ela afirma com uma ponta de firmeza que naquela casa ela não respondia a ninguém.
Pego de surpresa, Chris diz a ela que está tudo bem e também revela sentir-se “nervoso rodeado por muita gente branca”. Interessantemente, tal revelação de Chris funciona quase como o flash do seu telefone celular, pois algo indica que a consciência negra submersa dentro do cérebro de Georgina tenta vir à tona tocada pelas palavras de Chris. Assim se inicia uma intensa batalha interna com a consciência branca dominante. O rosto de Georgina torna-se, então, o palco onde esta batalha é travada.
Um silêncio enche o ar e o constante sorriso anterior desaparece; uma expressão de aflição surge para logo dar lugar a um rápido franzido da testa e um olhar triste, e balbuciando, ela tenta dizer algo, como um pedido de ajuda ou um alerta. Mas, Georgina se restabelece e volta a exibir o mesmo sorriso bem composto em seu rosto. O sorriso é manchado por uma enorme lágrima que aflora em seu olho e desce deixando um rastro molhado até sua boca. O sorriso se torna uma pequena e contida gargalhada que carrega uma pitada de arrogância para logo depois apresentar um rápido traço pungente de dor.
E é aqui que surge a—já lendária—repetição calma e contínua da palavra “não”, que se inicia com um leve tom de comando para se transformar em um espécie de acalando condescendente destinado a fazer adormecer a consciência negra; colocar a consciência negra de volta a seu lugar. Aparentando estar completamente restaurada, Georgina recupera a linguagem, a dicção, e a compostura de uma dama refinada, e branca, para afirmar que ela não compartilha do sentimento dele, já que a experiência dela ao redor de brancos é diferente, e que naquela casa ela é tratada como família. Com o mesmo sorriso, ela, altiva, se vira e sai do quarto em passos firmes e rápidos, deixando Chris sozinho e completamente atordoado—assim como os que assistem o filme. Fim da Cena.
Mas como a atriz conseguiu uma atuação tão perfeita e altamente precisa? Bem, durante uma entrevista no tapete vermelho do Oscar para o portal E! Online, Betty diz que um adereço foi um dos traços mais interessantemente complicados de Georgina e que a ajudou na montagem da personagem:
Definitivamente, foi a peruca. (…) Eu gostaria de dizer que foi algo mais profundo, mas foi a peruca. [A personagem] realmente me forneceu o bastante. Mas além disso, obviamente foi muito divertido fazer algo tão louco e bizarro mas que na verdade é baseado em algo obviamente horripilante”.
Na mesma entrevista, Bradley Whitford, ator que interpreta Dean Armitage (o pai da namorada do Chris), declarou: “Betty realizou o que eu penso ser uma das maiores tomadas na história do cinema onde ela está interpretando 20 coisas diferentes. Aquela personagem é a definição de 'pessoa difícil'”.
Mesmo somente tendo recebido um prêmio do Women Film Critics Circle Awards por seu desempenho em “Corra!”, a cena de Georgina conversando com Chris entrou para o rol das melhores cenas curtas e mais memoráveis do cinema. Pois é... Ela merecia pelo menos uma indicação ao Oscar. (Muito embora tanto a versão legendada como a dublada não consigam fazer jus às nunces linguísticas do roteiro—assim como o próprio título em português que deveria ter sido “Cai Fora!” e não “Corra!”—, a cena dublada pode ser vista aqui.
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