Armas de Fogo e a Tóxica Sobrecompensação Masculina: O Massacre em Orlando


Omar Mateen, o atirador de Orlando. “Mesmo que o atirador de Orlando tenha abraçado a ideologia do Exército Islâmico, o padrão de sua atrocidade é distintamente estadunidense”, escreveu Andrew O´Hehir em 13 de junho deste ano em seu artigo também para a revista online Salon (Foto: Salon/Benjamin Wheelock/AP)

Amanda Marcotte Sobre o Tema Comum do Massacre em Orlando.

Para a escritora política estadunidense Amanda Marcotte, o massacre de Orlando revela o apego às armas de fogo presente na cultura masculina dos Estados Unidos. Para ela, as armas de fogo são uma sobrecompensação usadas por homens com problemas de dominância e controle para superar o medo e o terror que sentem de estarem vinculados a qualquer postura remotamente feminina. A masculinidade tóxica sobrecompensa tal terror através do armamento e de atitudes que glorificam, em tempos de eleição presidencial, a violência como a única solução para acabar com a violência.

Nota: Entende-se por “sobrecompensação” a atitude de tentar ao máximo corrigir um problema e, assim, criar um novo problema; ou melhor, o dicionário Merriam Webster define o termo inglês “overcompensation” como uma “excessiva reação a um sentimento de inferioridade, culpa, ou inadequação que leva a uma tentativa exagerada de superar tal sentimento”.

No dia 13 de junho, a escritora estadunidense Amanda Marcotte publicou um artigo no site da revista online Salon onde ela reflete sobre o trágico evento ocorrido no clube noturno Pulse, em Orlando, estado da Flórida, que atende a comunidade gay. Como uma escritora política, o artigo de Marcotte foca na reação da tragédia na esfera política dos Estados Unidos, que mais uma vez, após mais um massacre a tiros, e agora em plena e acirrada campanha presidencial, levou a população a refletir, discutir, e brigar a favor ou contra a revisão das políticas públicas direcionadas ao porte de arma de fogo naquele país. Marcotte analisa e comenta, de maneira altamente crítica, as consequências do massacre olhando primariamente no entendimento da masculinidade estadunidense.


Abaixo vai o artigo traduzido que, muito embora seja um texto que analisa internamente a cultura estadunidense, pode—ou não—trazer uma luz para se observar questões similares no contexto brasileiro.

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A Nação da Sobrecompensação: Está na hora de admitir que a masculinidade tóxica conduz à violência armada

Nossa ligação nacional aos modelos masculinos de dominância é a grande razão pela qual temos tanta violência.

por Amanda Marcotte

Seguindo o horrível massacre que deixou 50 mortos em Orlando, uma luta política se forma em torno da definição deste ato como um crime anti-gay ou como um ato de terrorismo radical islâmico. A resposta rapidamente começa aparentar ser ambos, e mais. Um quadro está rapidamente se formando sobre quem era Omar Mateen, o atirador. Sua ex-esposa o descreve como um homem que era controlador e abusivoUm colega diz que ele sempre usava insultos raciais e sexuais e “falava sobre matar pessoas a todo o tempo”. Tanto sua ex-mulher como seu pai o descrevem como homofóbico, com o seu pai dizendo que Omar teve um ataque de fúria com a visão de dois homens se beijando. Ele claramente gostava muito de armas de fogo, tendo não uma, mas duas licenças de porte. Ele trabalhava em uma firma de segurança, uma carreira que pode ser atraente para homens com problemas de dominância e controle. Ele foi investigado pelo FBI em 2013 por ameaçar um colega de trabalho.

Aqui há um tema comum: A Masculinidade Tóxica.


Toda as vezes que as feministas falam sobre masculinidade tóxica, há um coro de caras chorões que imediatamente presumem—ou fingem presumir—que as feministas estão condenando toda masculinidade, mesmo que o termo modificador “tóxica” inerentemente sugere que há formas de masculinidade que não são tóxicas.

Então, sendo excruciantemente clara, a masculinidade tóxica é um modelo específico de masculinidade, orientada à dominância e ao controle. Esta é uma masculinidade que vê mulheres e pessoas LGBT como inferiores, vê sexo não como um ato de afeto mas sim como um ato de dominação, e a qual valoriza a violência como forma de se auto validar para o mundo.

Por razões políticas óbvias, conservadores estão se empenhando o mais rápido possível para ligar o massacre ao “islamismo radical”, ou seja eles estão tentando insinuar que há algo inerente ao Islamismo e não ao Cristianismo que causa este tipo de violência. Isto, é claro, é uma velha baboseira, uma vez que há uma longa e ignóbil história de homens identificados como cristãos, absorvidos no culto da masculinidade tóxica, semeando discórdia e causando violência em nosso país: Os milicianos armados que causaram um confronto decisivo [com o governo] em Oregon, a autonomeada patrulha fronteiriça chamada de Minutemen que recentemente voltou aos noticiários pelo fato de seu fundador ter sido condenado por abuso infantil, e homens que atacam clínicas e provedores de aborto.

A masculinidade tóxica ambiciona a dureza e a determinação mas é, na verdade, uma ideologia de viver na angústia e no medo. O medo de nunca parecer macio, sensível, fraco, ou de alguma forma menos másculo. Esta insegurança talvez seja a mais vigorosa característica definindo a masculinidade tóxica.

Os exemplos são intermináveis: Donald Trump perdendo a cabeça quando alguém o provoca mencionando seus dedos pequenos. (Ou sobre qualquer coisa, na verdade.) As absurdamente longas e desgrenhadas barbas do programa de TV “Duck Dynasty” [“Os Reis dos Patos,” no Brasil] destinadas a evitar qualquer associação com a temível feminilidade usando um matagal capilar. O surgimento do termo “cuckservative” (1), passou a circular pela linha-dura da direita sugerindo, de algum modo, que racismo insuficiente é algo emasculador. Conservadores completamente pirando com um anúncio publicitário do Obamacare sugerindo que, pasmem, às vezes homens usam pijamas.

(Esse anúncio publicitário os traumatizou tanto que muitos desses críticos conservadores ainda estão pirando, anos após o fato, por ter o governo Obama ousado sugerir que o tecido emasculador do pijama de flanela já tenha tocado a pele de um macho estadunidense. Na verdade, provavelmente seja emasculador sugerir por completo que homens tenham pele, uma vez que “pele” é uma conceito tão feminino em nossa cultura, por conta de cremes hidratantes e esse tipo de coisa.)

Se a masculinidade tóxica fosse apenas uma reunião de homens parlapateando de maneira cômica, isto seria uma coisa, mas esta pressão persistente de ter de provar constantemente suas virilidades e repelir qualquer coisa considerada feminina ou emasculadora é a razão principal pela qual temos tantos tiroteios e massacres nos Estados Unidos. Se é terrorismo islâmico ou um massacre a tiros no estilo Columbine ou, como é o caso de alguns dos mais comuns tipos de fuzilamento mas com menos cobertura, um ato de violência doméstica por um homem que escolheria matar sua família do que perder o controle sobre ela, o denominador comum é esta masculinidade tóxica, um desejo da parte do atirador de exibir quanto poder e controle ele tem, de elevar a dominância masculina ao nível de até mesmo exercer o controle sobre a vida e a morte.

A masculinidade tóxica é também a razão que faz ser tão fácil para os homens significativamente problemáticos conseguirem colocar as mãos em armas de alta potência necessárias para cometer tais crimes. Claro, o movimento pro armas neste país gosta de lançar um bando de pseudo-argumentos mal elaborados simulando uma lógica para justificar a falta de controle de armas no país, mas na verdade, o argumento emocional para venda de armas de fogo é que estas alimentam o culto da masculinidade tóxica. Ser capaz de estocar armamento e ter armas maiores e de aparência ainda mais assustadoras é simples e inegavelmente uma sobrecompensação de homens inseguros tentando provar o quão másculos eles são.

Este é o motivo pelo qual qualquer tentativa de se discutir mesmo a menor e a mais sensata restrição do uso de armas se transforma em um bando de carinhas de direita exaltados contra os liberais que estariam a caminho de lhes retirar suas armas. Esta não é uma discussão realizada no plano da racionalidade, mas sim um drama psicológico sobre o medo que estes homens sentem da emasculação, representado de um modo nada sutil pelo apego que eles têm às armas de fogo e o medo que eles sentem de que os liberais, que em suas mentes são estereotipados como efeminados, estariam a caminho para lhes roubar suas armas.

E, claro, na situação em Orlando, temos o acrescentado problema da homofobia, a qual é chamada de “fobia” por uma razão, já que esta constantemente se encontra bastante enraizada na masculinidade tóxica e no terror de qualquer coisa mesmo que remotamente feminina.

O que é particularmente frustrante sobre tudo isso é que, mesmo que a masculinidade tóxica claramente seja o problema em questão aqui, há um grupo de conservadores correndo para cima e para baixo promovendo a masculinidade tóxica como a solução, como se tudo que precisássemos para acabar com a violência e com o terrorismo fosse um bando de tolos parlapateando sobre quem é o maior homem dentre todos os homens que estão por aí.

Donald Trump, é claro, esteve liderando a matilha nesta empreitada, parlapateando sobre como nós precisamos de “dureza”, a qual ele parece definir como uma disposição em usar o twitter para postar baboseiras ignorantes e beligerantes. Parlapatear muito, em geral, é a estratégia preferia da turma da masculinidade tóxica em resposta ao terrorismo. Muita conversa fiada sobre como os democratas se recusam a dizer “islamismo radical”, supostamente por covardice, e de como os mais bravos e mais masculinos dos homens dirão isso e, assim, a força maior da bravura demonstrada pelas palavras que eles usarem, de alguma forma será o tíquete mágico para terminar com o problema.

Com isso, é claro, têm-se um coro de conservadores que impregnam os seus símbolos de masculinidade tóxica, armas de fogo, com poderes quase mágicos para de alguma maneira acabar com a violência.

“Sob as leis da Flórida, armas podem ser levadas para os bares”, John Hinderaker do blog Power Line tentou argumentar. “Então a boate Pulse era um espaço que proibia o porte de armas. Esta é uma mudança legal que deveria ser feita”.

A ideia de que um bando de pessoas alcoolizadas dançando por todo lado dentro de uma boate estariam mais seguras se estivessem portando armas carregadas, certamente não parte da racionalidade, mas sim de uma grande insegurança e de uma esquisitice de gênero que trata os símbolos fálicos como se fossem totens mágicos. Mas a realidade é que havia um segurança armado na boate, um policial fora de serviço que enfrentou Omar Mateen sem sucesso. Nosso país está saturado de armas de fogo, mas ainda assim a figura mítica do “homem de bem com uma pistola” que jurou impedir os massacres e tiroteios, na verdade ainda tem que ser produzido. Isto porque o “homem de bem com uma arma de fogo” é um mito criado para justificar a obsessão da masculinidade tóxica com armas de fogo, e nada mais.

A história de horror ocorrida em Orlando desnuda quais são os danos que este tipo de masculinidade orientada pela dominância produz na nossa sociedade, logo durante uma eleição quando um intimidador sobrecompensador completamente mergulhado no discurso da masculinidade tóxica é o candidato republicano para a presidência. Este é um sério lembrete de porquê nós, enquanto um país, precisamos ultrapassar a política do homem durão e parlapatão e nos mover em direção a uma sociedade mais ponderada e inclusiva. Um sociedade com mais dança e com menos balançar de armas de fogo ao nosso redor enquanto se conversa sobre o homem másculo que você se imagina ser.

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Amanda Marcotte escreve sobre política para a Salon. She's on Twitter @AmandaMarcotte

(1) Cuckservative literalmente significa “corno conservador” – Termo racista usado em relação a alguém que não apoia a supremacia da raça branca. O termo surgiu em 2015 com a junção das palavras cuckold, que de maneira geral significa “corno”, e conservative que significa “conservador”, politicamente de direita. Cuckservative é um termo pejorativo usado pelos neo-reacionários para descrever os brancos conservadores que adotam algumas posições estabelecidas pela esquerda e, que se recusam a expressar apoio à supremacia branca ou às crenças do separatismo branco. (Fonte: Red State; Alere Flammam Veritatis (Humanismo Secular). Para mais sobre o significado da palavra cuckold, a página da Wikipédia oferece mais informação.


Nota de tradução: A palavra inglesa 'posturing', que é definida no dicionário Cambridge como “Comportamento ou discurso que é destinado a atrair atenção e interesse, ou para fazer com que as pessoas acreditem em algo que não é verdade”, foi traduzida através de uma palavra 'parlapatice' na língua portuguesa, pouco usada nos dias de hoje, mas que se aproxima à definição de 'posturing'. "Parlapatice" é definida no Dicio—Dicionário Online de Português como “Ação, discurso ou comportamento de parlapatão”. 'Parlapatão', por sua vez, é definido no Dicionário Priberam como, “Que ou quem engana os outros com as suas conversas intrujonas () e mentiras”, e no Dicionário Houaiss como, “Quem ou o que se vale de embustes, de contar mentiras e vantagens”. 'Parlapatice' e derivados, então, foram usados para traduzir a palavra 'posturing' entendendo o caráter 'exibicionista' (chamar atenção e/ou criar interesse) como podendo ser inerente ao termo.

c&p

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