‘Game of Thrones’: A Humilhação de Cersei Reflete Um Jogo Político Atual

A personagem Cersei ‘Lannister’ Baratheon de “Game of Thrones”, vivida pela atriz britânica Lena Headey, em sua “Caminhada da Vergonha” sendo seguida pela Pardoca que gritava repetidamente, “Vergonha!”. (Imagem: Reprodução/Internet).

Ao utilizar a sexualidade do seu futuro esposo para vingança pessoal e, principalmente como vantagem política junto a um movimento religioso, a Rainha Cersei ‘Lannister’ Baratheon dá um tiro no próprio pé. Tal evento também nos leva a pensar sobre a nossa atualidade política.

A 5a temporada de Game of Thrones da HBO (“Jogo dos Tronos”, em tradução literal) conseguiu manter as dimensões dramáticas das temporadas anteriores. Teve tudo aquilo que faz a série ser cultuada por um gigantesco número de fãs: matança, decapitação, estupro, o sacrifício de uma criança, sexo, guerras, gigantes, nudez, zumbis, e alguns personagens principais sendo mortos.

Mas foi a humilhação pública sofrida por Cersei ‘Lannister’ Baratheon, imposta pelo movimento religioso Sparrows (Pardais), que não sairá da cabeça dos fãs durante algum tempo. Foi algo memorável; uma lição a Cersei. Na verdade, a humilhação de Cersei serve como uma reflexão política para todos nós, governantes e súditos.


A Rainha Cersei foi acusada pelos crimes de “fornicação”, “traição” e “incesto”. Após passar dias no cárcere medieval e enfraquecida pela fome e pela sede, ela decide confessar. Porém, ela apenas confessa o crime de fornicação (no caso, adultério), porque Cersei não é burra—traição e regicídio certamente a levaria à morte e, por certo, incesto na cabeça dos Pardais também seria alvo de grande punição.

Com a confissão, o High Sparrow (Pardal Superior, ou Alto Pardal), o líder daquele movimento religioso, a libera até o seu julgamento. Cersei poderia retornar à sua residência real, mas antes deveria passar pela “Caminhada da Vergonha”. Ela teve o seu cabelo cortado bem curto, e nua ela caminhou até o castelo. Durante o percurso ela foi seguida por uma Pardoca que balançava um sino e gritava, “Vergonha!”, em breves intervalos de tempo. Uma multidão histericamente enfurecida a chamava de piranha e outros nomes; cuspiram em sua cara e jogaram fezes e lixo no seu corpo desnudo enquanto ela pisava nas poças cheias de imundice das estreitas vias de King’s Landing (nome traduzido para o português como Porto Real). E com os pés sangrando, Cersei finalmente chega ao castelo.

Mesmo sentindo um pouquinho de pena, vários fãs encontraram consolo e satisfação em tamanha humilhação. Cersei Lannister mereceu. Mas seria justo chamar aquela caminhada de justiça?


Se levarmos em conta que Cersei não estava sendo humilhada por todos os inúmeros atos desumanos que ela já cometeu, aquilo não foi justiça. Agora, se levarmos em consideração que Cersei forneceu um grande e sério poder ao High Sparrow e supriu armamento para os “Militantes da Fé” como parte de mais uma manobra política por ela planejada, sim, aquilo foi justiça.

A Rainha Cersei deu um grande tiro que no próprio pé. Mas para ela aquilo também foi um sinal, uma lição: Não brinque com fanáticos.

Certamente equivocada pela humildade e devoção dos Pardais, Cersei não percebeu o quão alta aquela devoção verdadeiramente era. Ela fez do Grande Pardal o novo High Septon (traduzido para o português como “Alto Septão”), ou seja, o título dado ao Chefe da Faith of Seven (Fé dos Sete), a religião dominante no reino. Cersei também restaurou e forneceu armas aos “Militantes da Fé”, o exército da Fé dos Sete. Agora armados e com autoridade, os Pardais através dos “Militantes da Fé” destroem bordeis e matam tanto as prostitutas como os seus clientes. Eles destroem barris de vinhos. Eles quebram imagens dos deuses não pertencentes a sua fé.

Mas o que levou Cersei a deitar-se com os Pardais? Game of Thrones sendo uma série sobre política (queira-se ou não, é isso o que a série é), a relação de Cersei com os Pardais não passou de uma tentativa frustrada de coligação política.

Cersei se aliou ao movimento religioso por simples vaidade política, por sua grande sede de poder, e para satisfazer o seu enorme ego. Ela tinha um plano para continuar governando através de seu bem jovem e ingênuo filho Tommen, recentemente coroado como o novo Rei dos Sete Reinos—ocupando o tal Trono de Ferro razão de tanto drama e mortes. Tommem agora está casado com a esperta, bela e jovem Margaery Tyrell, agora a nova rainha—Cersei passa a ser chamada de Rainha Mãe, o que não a deixa muito feliz. O casamento de Tommem com Margaery foi parte de uma aliança (uma outra coligação política) entre as rivais Casa Tyrell e Casa Lannister que também prevê o casamento de Cersei com Loras Tyrell, o valente guerreiro e irmão da nova Rainha.

Ao se tornar a “Rainha Mãe”, Cersei percebe que estava prestes a perder o poder de persuasão sobre seu filho Rei para a nova Rainha—também cheia de planos políticos. Cersei então toma uma decisão condizente ao seu caráter. Ela entrega Loras Tyrell ao High Sparrow como um valioso troféu na cruzada dos Pardais, os quais não perdoam os nobres ricos e nem os pobres súditos. Ela revela ao High Sparrow que Loras é gay. Loras é preso pelos Pardais acusado de “sodomia” e “blasfêmia”. Durante um rápido julgamento, o amante de Loras confirma a acusação e ainda revela que a Rainha Margaery, que acabara de testemunhar a favor de Loras, estava ciente da sexualidade do irmão. Margaery também é presa e acusada de “perjúrio” e “blasfêmia”. Cersei se regojiza; ela se manteria no comando do trono!

Para a Rainha Mãe aquela fúria dos Pardais poderia ser usada tanto a favor de suas ambições políticas quanto para as suas vinganças pessoais. Contudo, talvez cega por sua fome de poder, Cersei não imaginou que ela também se tonaria alvo da violência do movimento religioso mesmo estando com o rabo preso a vários dos ‘pecados’ abominados por eles—e por vários outros personagens bem menos santos. Ela se imaginou inatingível por ter dado todo aquele poder aos Pardais.

Cersei, durante a sua longa “caminhada”, certamente já planejava uma vingança bombástica e extravagante contra o Grande Pardal. Assim, a 6a temporada da série já tem um bom motivo para ser ansiosamente aguardada.

Mas qual seria a lição que a última temporada de Game of Thrones oferece a nossa atualidade? Bem, no máximo a trama nos fornece o suficiente para uma boa reflexão.

Hoje, no mundo real, vivemos um período sombrio no qual “fé” vem sendo usada como justificativa para humilhações públicas e para despudoradas demonstrações de preconceitos. “Fé” tenta hoje se impor como forma de governar e julgar dentro dos limites de um Estado-Nação que possui as suas próprias leis e procedimentos legais. E, sombria e imoralmente, “fé” também tem sido usada como um forte escudo para que os crimes de constrangimento, lesão corporal, vandalismo, e de homicídio sejam cometidos.

É importante notar que a cena da humilhação pública de Cersei no drama épico da HBO tem raízes históricas reais: a punição pela qual mulheres adúlteras eram subjugadas no período medieval que intencionava marcar as ofensoras com uma duradoura má reputação. George R.R. Martin, o escritor da série literária adaptada para a televisão, se inspirou na humilhação pela qual Jane Shore, uma das amantes do Rei Edward IV (1442- 1483), foi forçada a enfrentar: caminhar pelas ruas de Londres—mas diferentemente de Cersei, Jane pôde manter uma camada de roupa.

O julgamento medieval baseado na fé cristã levou homens e mulheres inocentes à morte. Não só as adúlteras, as prostituas e os homossexuais foram executados. Parteiras e aqueles que praticavam algum conhecimento medicinal, eram executados quando se era conveniente. Muitos dos chamados “bruxos” e “bruxas” acusados de conivência com o trabalho do diabo, foram realmente executados pelo crime de “traição” ao trono—crime fundamental dentro do sistema feudal. Aquelas penas eram acompanhadas pelas multidões de pessoas comuns que se divertiam histericamente com aqueles espetáculos educativos que, sobretudo, lhes advertia: Obedeça nossas regras, ou amanhã será você.

Os eventos da última temporada da série Game of Thrones também nos remete a fatos atuais. As ações dos militantes dos Pardais, o seu surgimento e o seu modo e meios de operação através do terror, se assemelham com a atuação do Estado Islâmico. Qualquer governo hoje presta atenção ao surgimento de exércitos paralelos dentro de seu território, principalmente aqueles que operam sob distorcidas regras religiosas. Cersei parece ter acordado para este fato.

Também, deve-se notar que até então, mesmo com o poder que ela tem, Cersei nunca havia demonstrado qualquer grande problema com a sexualidade de ninguém—até porque o grande amor de sua vida é o seu próprio irmão, que é também o pai dos seus filhos (os filhos de Cersei não são filhos do seu falecido marido, o rei que ela assassinou). Mesmo assim, quando lhe foi conveniente ela usou a homossexualidade de Loras Tyrell como um ‘meio’ de se manter no poder.

Para alguns políticos atualmente espalhados pelo mundo, combater a homossexualidade se tornou uma forma eficaz de alcançar o poder, de ganhar eleições, de manterem-se autoridades regadas de privilégios, usando o velho estigma que os gays carregam. Cersei entregou a sexualidade de seu futuro marido ao High Sparrow para ganhar credibilidade política junto aos Pardais, e tal ação passa a servir de exemplo de como a mistura de “sexualidade”, “preconceito” e  vem atualmente sendo usada na política: por não combinar com a fé, ou com os valores pessoais de um grupo, a homossexualidade para alguns políticos tornou-se um “meio” e não um “fim”. Ou seja, na política atual, o combate a homossexualidade é apenas uma estratégia (um meio) para chegar ao governo e a todo o poder que este oferece (o fim).

Muitos dos políticos que pregam a caça dos direitos dos gays, na verdade estão “cagando e andando” para o tema homossexualidade, mas nele ainda enxergam um grande lucro político—o que por vezes pode vir a ser um grande tiro no pé, como o ocorrido com Cersei e como também parece ter ocorrido durante a fase de campanha da nossa última eleição presidencial com uma das candidatas. Ainda, o posicionamento contrário a homossexualidade na política serve como uma estratégia simples e eficaz de se desviar a atenção da população das questões realmente importantes e de maior relevância, muitas das quais os políticos empenhados na caça aos gays não estão capacitados a tratar.

Os eventos político-religiosos da última temporada da série Game of Thrones podem também ser lidos como uma advertência dirigida não somente aos políticos e governantes. Assim como a multidão histericamente furiosa que agrediu a Rainha Cersei enquanto ela caminhava desnuda pelas vielas de King’s Landing nos remete às multidões enfurecidas do período medieval que se regojizavam ao ver uma parteira queimar na fogueira acusada de bruxaria pela igreja, muitos cidadãos comuns de hoje em dia se deleitam com espetáculos bastante similares.

Mesmo sendo difícil de acreditar, em oposição ao grande número de cidadãos que veementemente condenam atos criminosos injustificáveis, existem hoje entre nós aqueles muitos outros que aplaudem e ficam felizes de satisfação quando uma menina de 11 anos é apedrejada sob a acusação informal de ser filha do demônio por pertencer a uma fé diferente daquelas de seus carrascos. Muitos louvam e defendem os militantes religiosos quando eles urinam e quebram uma imagem de Nossa Senhora. Muitos gozam de prazer ao saberem que um menino de 8 anos teve seu fígado dilacerado pelo próprio pai porque gostava de “lavar louça” e que (na opinião de seu pai) “não andava como homem”.

E quando uma mulher é assassinada pelo marido, companheiro, namorado, por ela ter cometido adultério, ou quando uma mulher é assassinada pelo ex-marido, ex-companheiro, ou ex-namorado, por ela estabelecer uma nova relação, muitos e muitas se regojizam de contentamento por crerem que tanto o adultério quanto a troca de parceiros sejam privilégios exclusivamente masculinos.

A malvada personagem Cersei, sedenta por poder, talvez nos sirva como a representação de alguns dos políticos atuais, assim como a militância dos Pardais poderia representar a fúria descontrolada da “fé” que hoje vemos surgir frequentemente em nossa realidade na forma de “crimes” previstos em lei. Assim, quando hoje observarmos as reencenações dos espetáculos medievais sendo realizadas pelos atuais ‘militantes da fé’, devemos nos perguntar e refletir sobre quem realmente se beneficia de tais práticas. A história mostra que muito raramente é o povo, pois grande parte dele é levada a se ocupar em ferir a si mesmo.

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A série da HBO é uma das mais caras produções da história da televisão e se tornou uma das séries mais aclamadas. E não é a toa. A complexa trama sobre uma disputa por um trono, uma grande e violenta guerra pelo poder montada a partir de uma dramaturgia e atuações impecáveis, de cenários, figurinos e efeitos especiais deslumbrantes, e de sotaque britânico, só nos faz querer mais—mesmo quando o enorme número de personagens e eventos às vezes nos deixa meio tontos.

Cersei ainda vive. Então, que nos venha a 6a temporada de Game of Thrones!

c&p

Fonte: Game of Thrones Wikia; Salon; Entertainment Weekly; BBC.

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