Cartaz brasileiro do filme “Kickboxer - O Desafio do Dragão” de 1989. (Reprodução/Internet). |
Qual a ligação entre Jean-Claude Van Damme e o Kuduro? A cena do ator dançando bêbado inspirou a criação do movimento cultural angolano durante um longo período de guerra.
Tony Amado, uma espécie de pai do Kuduro, revela que ele se inspirou em uma dança do ator belga Jean-Claude Van Damme para a criação de um novo estilo de dança que anos mais tarde se tornaria um estilo musical e uma nova expressão cultural de Angola. O quê ele conta, mais precisamente, é que a inspiração para o novo estilo de dança denominada Kuduro, surgiu após assistir Jean-Claude Van Damme (JCVD) dançando bêbado em uma cena do filme “Kickboxer” de 1989 (filme que recebeu o título “Kickboxer - O Desafio do Dragão” no Brasil) sob o som de “Feeling So Good Today” (“Sentindo-me Tão Bem Hoje”) cantada por Beau Williams.
Este fato poderia ser mais uma daquelas curiosidades que circundam fatos relacionados a expressões culturais e/ou fofocas de celebridades. Mas a relação de JCVD e o Kuduro é algo muito mais interessante e inusitado. Nem Tony Amado, nem outro fomentador do Kuduro, esteve em contato direto com JCVD, mas o desempenho do ator dançando e rebolando bêbado no filme foi significante o suficiente para ser apropriado pelos criadores do Kuduro. Mas, por quê? Bem, primeiro vamos ao filme.No filme, JCVD interpreta Kurt Sloane, um técnico de lutas que vai à Tailândia vingar-se do lutador Tong Po (interpretado pelo amigo de infância de JCVD, o ator e artista marcial Michel Qissi), que durante uma luta de vários golpes baixos, deixou o irmão de Kurt paralisado da cintura para baixo. Antes da sua luta por vingança, Kurt é levado a um mestre de Muay Thai (box tailandês) que vive em uma pequena vila fora de Bangkok.
Depois de vários treinamentos, para testar o equilíbrio de seu pupilo, o mestre Xian Chow (interpretado por Dennis Chan) leva Kurt a um bar e o faz ingerir doses de uma bebida chamada “o beijo da morte” preparando-o para a última fase de seu treinamento, ou seja, dançar embriagado—ao que tudo indica no filme. Kurt é levantado de sua cadeira por seu mestre que lhe dá a mão de uma moça que está dançando. Kurt chama outra moça para dançar e baila entre as duas tailandesas.
Os homens locais que estavam no bar, seja por Kurt estar dançando com duas mulheres locais, ou tão somente pela dança em si, se sentem bem incomodados com o forasteiro rebolador e partem para o ataque. Kurt se defende e os nocauteia com uma elegância etílica enquanto ainda dança.E assim está criada uma das mais memoráveis cenas de dança do cinema de ação.
O filme se passa na Tailândia e não em Angola, e também não foi possível encontrar nenhum registro de JCVD em visita à Angola ou dançando em Luanda. Isto indica que o uso da dança de JCVD pelos angolanos para criação de uma nova expressão cultural, se deu pela possibilidade e facilidade de apropriação de imagens e informações produzidas por Hollywood e que acabam transcendendo fronteiras geográficas e, também, culturais. Aquela foi simplesmente um releitura de uma dança parte de um produto cultural estadunidense.
Hollywood sempre foi um canal para lançar modas que serão, certamente, apropriadas por alguém ou alguns. Mas qual o apelo daquela dança de JCVD em Angola?A apropriação da dança apresentada no filme se deu em um momento de transição da sociedade angolana que ainda vivia um longo período de guerra. A Guerra Civil Angolana foi um longo conflito civil que se iniciou em 1975 terminando em 2002. Aquela foi uma guerra entre dois movimentos de libertação que saíram da Guerra de Independência de Angola que teve início em 1961, e que terminou somente em 1974.
“Kickboxer” simplesmente oferece um entretenimento básico; é um típico filme de luta dos anos 80 confeccionado diretamente para o público masculino. Como aponta a crítica do filme feita pelo site Dead End Follies, o filme “não é particularmente bem escrito ou com boa atuação, mas é um testemunho da febre do kickboxing que assolou os EUA nos anos 80”.
Como a maioria dos filmes de ação e de arte marciais, “Kickboxer” não poderia ser classificado como um filme politico, mas isto depende somente de quem é o público.
Um filme de ação assistido em um país em guerra, ao apresentar uma cena em que o “mocinho” dança completamente embriagado, pode ter sido altamente atrativo por mostrar esse momento de quase vulnerabilidade do macho, que mesmo “rebolando” e mexendo suas nádegas musculosas (ou duras), e mesmo estando altamente bêbado, consegue lutar e não perde sua virilidade masculina.
Transformar uma dança que é ao mesmo tempo uma luta, e que é parte de um filme que narra a estória de um homem que procura vingança para um ato de injustiça cometida contra seu irmão, deve ter feito muito sentido para levar Tony Amado a criar uma dança durante um período de guerra.
Mário Patrocínio, diretor do documentário “I Love Kuduro” (2013), em uma entrevista para o Rede Angola, diz que o “kuduro conta a história de uma passagem, de uma libertação, e um dos momentos mais comoventes do filme [documentário] é quando ouvimos um dos primeiros bailarinos de kuduro explicar que antes de entrar em palco pensava como ia fazer uma mãe que tivesse perdido o filho sorrir”.
Van Damme, na cena cômica que representa um momento de uma possível fragilidade masculina—o Kurt embriagado, e engraçado—, exemplifica como o entretenimento, o riso, o divertimento pode responder contagiosamente a um momento de fragilidade humana. O Kuduro emerge junto aos jovens da periferia de Luanda na última década do bem longo período de guerras, e hoje se encontra espalhado pelo mundo como uma celebração de liberdade e de mais de uma década de paz em Angola.
Um movimento e expressão cultural de jovens que teve seu nome inspirado nas mexidas da bunda—ou do cu duro—de Jean-Claude Van Damme em um filme hollywoodiano de artes marciais, representa não somente uma transcendência cultural, mas também uma transcendência mental e corporal estimulada pelo simples direito de (metaforicamente) lutar, de se divertir, e/ou de simplesmente viver.
A maior lição disso tudo é que um filme não necessita ser “genial”, ou “ótimo”, ou tão somente “bom” nos olhos dos críticos de arte, para ter relevância social e cultural e se tornar um verdadeiro cult.
Ainda, no caso particular desta apropriação, faria sentido adaptar um velho ditado e dizer, Kuduro de bêbado não tem dono.
c&p
Fonte: Rede Angola, Revista Super Interessante, “O que é kuduro?”; Wikipedia, filme Kickboxer; Dead End Follies; Soundtrack Info Project.
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