A Série “The Bridge” do Canal FX Não Merecia Ter Sido Cancelada

Imagem de La Santa Muerte que um grupo de imigrantes se depara enquanto cruza o deserto no episódio Calaca, segundo episódio da primeira temporada de The Bridge. (Foto: Reprodução/Internet)

Ao lidar com assuntos de real importância social e político, por que a série The Bridge não conquistou o público nos Estados Unidos?

Apresentando um protagonista mexicano e tendo podido ser uma via de importantes discussões sobre a ineficácia da longa, dispendiosa, e falida guerra às drogas, a série merecia pelo menos uma última temporada.

A série do canal FX, The Bridge (“A Ponte”), um drama policial que tentou explorar as tensões da fronteira dos EUA e México, foi cancelada logo após o término de uma segunda temporada muito boa. Baseada na série sueco-dinamarquesa “Bron/Broen” (que também significam “ponte” nas respectivas línguas), a versão estadunidense criada por Meredith Stiehm, Björn Stein e Elwood Reide, claramente teve alguns problemas técnicos em sua temporada de estreia.

Um dos mais marcantes destes problemas foi a trama principal meio ofuscada por estórias secundárias. Levando em consideração o grande número de personagens pra lá de complexos, começando pelos dois protagonistas, várias estórias paralelas podem ter confundido o telespectador. No final daquela temporada, no entanto, a série pareceu ter feito sentido ao apresentar um ponto em comum entre as várias tramas: o narcotráfico.

Finalmente encontrando um ponto básico, a estrutura da segunda temporada foi bem melhor. Muito melhor. The Bridge começou a fazer sentido. Mas não conseguiu captar uma boa audiência nos EUA. Este foi o motivo apresentado pelo canal FX para justificar o cancelamento da série.

Ficamos então sem entender a razão pela qual o público dos EUA não se interessou por The Bridge. A série contou com atores fantásticos, estórias bem interessantes, bem pouca nudez, uma dose de violência não tão maior do que aquela apresentada em qualquer outra série de grande sucesso hoje em dia, e um tópico atual e presente em várias partes do mundo.

The Bridge ganhou um Prêmio Peabody este ano por “destacar questões ao longo da fronteira que raramente são vistas na televisão dos EUA” e pela “criação de um drama criminal convincente”, informa o site do Peabody Award. Esse é o mais antigo prêmio dado à programas de jornalismo, rádio, televisão, documentários etc., e considera “estórias de importância” e de serviço público. Embora o Peabody seja um prêmio de prestígio por excelência em qualidade e não em popularidade, The Bridge não recebeu indicações aos badalados Emmy ou Golden Globe—dois prêmios que de fato podem aumentar a audiência de um programa.

Mas o quê significa “estória de importância” e “de serviço público” dentro da área de entretenimento? É claro o papel da mídia em construir e divulgar conceitos, ideias e valores. É também claro o papel da arte como um veículo para debates sociais e políticos. Já as produções que apresentam temas colhidos da vida real, automaticamente tornam-se veículos de discussão daquela realidade. E é dentro do atual contexto de violência instalado pelos cartéis do narcotráfico mexicano, que The Bridge foi socialmente relevante. No momento em que a série explora ficcionalmente o envolvimento de agentes dos EUA na perpetuação de negócios ilícitos do outro lado da fronteira, e que atravessa fronteiras, a série deveria ter se tornado socialmente importante ao público estadunidense. Mas não. The Bridge sai do ar.

Teria então The Bridge se tornado uma verdadeira ponte que conduzia o público estadunidense a uma realidade muito ‘real’, bastante próxima e, desconfortável? Ou a série não era entretenimento o suficiente?

O local onde a série se passa não poderia ser melhor para se explorar um drama policial. A fronteira entre a cidade de El Paso, no estado do Texas (Estados Unidos), e a cidade de Juarez, no estado de Chihuahua (México), são ligadas pela Bridge of the Americas (Ponte das Américas). As duas cidades, juntamente à cidade mexicana de Las Cruces, formam uma grande região metropolitana conhecida como Paso del Norte, área que concentra a maior força de trabalho bilíngue e bi-nacional do hemisfério norte. Na série, os personagens frequentemente transitam entre as duas cidades. Tanto os heróis quanto os vilões.

Com dois ótimos atores protagonizando os dois policiais, um de cada lado da fronteira, a série apresentou atuações formidáveis, em um todo. Demián Bichir, ator indicado ao Oscar 2012 pelo filme A Better Life (“Uma Vida Melhor”) de 2011—e que fará parte do elenco do novo filme do Tarantino—, interpretou o detetive mexicano Marco Ruiz. A atriz alemã, Diane Kruger, de “Troia” (2004) e de “Bastardos Inglórios” (2009), interpretou a detetive Sonya Cross, no lado estadunidense da fronteira.

O personagem de Demián Bichir, Marco Ruiz, vivia o drama do detective que tenta se manter distante do ambiente policial corrupto, que incluía o seu próprio chefe, ao mesmo tempo em que tentava se manter vivo. Tanto o tráfico de drogas quanto a violência contra mulheres, faziam parte da rotina do seu trabalho como agente da polícia estadual de Chihuahua. Seu passado o liga ao local chefão das drogas que atua no tráfico para os EUA. Diane Kruger interpretou Sonya que, do outro lado da fronteira, tenta se firmar como detetive competente sendo portadora (não diagnosticada) da Síndrome de Asperger, e que vive o longo trauma de ter perdido sua irmã em um assassinato brutal—ela frequentemente usa a jaqueta de couro que pertenceu a sua irmã.

A grande presença de atores latinos facilitou o uso de inúmeros e extensivos diálogos em espanhol, dando o necessário toque de realidade para retratar o contexto linguístico da região. Atores e atrizes viveram personagens nada glamourosos. Até mesmo a linda atriz e ex-modelo Diane Kruger, vivendo a personagem Sonya, apresentava o perfil de uma detetive de polícia nada fora do padrão de uma pessoa comum.

A atriz Diane Kruger viveu a detetive Sonya Cross. (Foto: Reprodução/Internet)

Na primeira temporada, os dois detetives são colocados juntos para trabalhar no caso de um assassino em série que matava mulheres dos dois lados da fronteira—talvez baseado nos fatos reais de 260 mulheres assassinadas e largadas no deserto nos anos 1990. Dentro desta trama, os dois detetives de personalidades bem diferentes conseguem construir um elo de confiança—uma grande conquista para Sonya. No final da temporada o assassino mata o filho de Marco através de um plano elaborado de vingança contra o detetive mexicano por este ter tido um caso com a sua mulher—o quê se torna um gancho para a trama da segunda temporada.

Os crimes contra mulheres na região é também apresentado em outra sub-estória da série que envolvia rapto, estupro, e o assassinato de mulheres em Juarez. Este é um outro fato real retratado pela série. As trabalhadoras das mais de mil fábricas-montadoras dos EUA que se instalaram em Juarez em busca de mão-de-obra barata e baixos impostos, são as principais vítimas desses crimes—tema do filme “Cidade do Silêncio” (2006)— no inglês Bordertown, “Cidade da Fronteira”—, estrelado por Jennifer Lopez, Antônio Banderas, Martin Sheen, e Sônia Braga.

“Eu sou apenas uma pessoa que ajuda as pessoas”, disse uma vez o personagem justiceiro Steven Linder (vivido pelo ator Thomas M. Wright). De voz grave e quase indecifrável, Linder é um “lobo solitário tentando sobreviver na fronteira sem lei. Ele é voluntário em um abrigo para mendigos, mas também tem um negócio que ajuda mulheres a escaparem de cônjuges e namorados abusivos. Ele saiu de casa quando jovem para escapar de seu pai abusivo com a intenção de voltar para resgatar a sua irmã; mas quando ele se tornou apto a salvá-la, ela já tinha morrido de overdose em um abrigo em Tulsa”. (TV Tropes) (Foto: Reprodução/Internet)

Já na segunda temporada os dois detetives se vêm no meio de uma batalha do tráfico que conta com o envolvimento da CIA para facilitar a entrada de drogas nos EUA, bem como na lavagem de dinheiro do narcotráfico—fato que choca a sensibilidade honesta de Sonya. Neste segundo ato da série, no México, um promotor do estado que investiga os casos de abdução e assassinato de mulheres, é assassinado brutalmente por policiais que atuam com o narcotráfico.

The Bridge não apostou nos anti-heróis como protagonistas. Na verdade, os personagens principais eram: um mexicano comum e uma mulher branca estadunidense de comportamento estranho. Os dois, com os seus dramas psicológicos, claramente estavam do lado do bem. Eles foram, na verdade, clássicos mocinhos. Junto, e separadamente, a eles, está um par incomum de jornalistas locais de El Paso: Daniel Frye, um bêbado arrogante (Matthew Lillard, de “Scooby-Doo”, de 2002), e Adriana Mendez, uma humilde lésbica mexicana (Emily Rios, da série “Breaking Bad”), que tentam decolar suas carreiras com uma matéria sobre lavagem de dinheiro do tráfico—no final da primeira temporada, a irmã de Adriana é raptada pelo tráfico quando saía do trabalho em uma fábrica.

Os jornalistas Daniel Frye e Adriana Mendez, que foram vividos pelo ator Matthew Lillard e pela atriz Emily Rios. (Foto: Reprodução/Internet)

O chefão do cartel mexicano em nada se parecia com chefões de cartéis de drogas convencionalmente retratados em filmes e séries; ou seja, os bonitões musculosos de cabelos compridos (presos em rabo-de-cavalo), de carrões e super bem vestidos, rodeados de modelos classe A—na realidade, essa cena glamourosa do tráfico parece hoje pertencer aos filhos dos grandes chefes do tráfico mexicano, auto-denominados narco juniors, ou a nova geração do narcotráfico no México, que ostentam riqueza e poder nas redes sociais. Ao contrário, o vilão da série, Fausto Galvan, foi vivido por um ator de aparência totalmente normal, bem longe dos padrões televisivos de beleza, o portoriquenho Ramón Franco. Mesmo sendo rico e poderoso, Fausto Galvan trajava-se como um membro da classe trabalhadora, mas dono de um caráter extremamente cruel.

O chefão do narcotráfico Fausto Galvan, foi interpretado pelo ator Ramón Franco. (Foto: Reprodução/Internet)

Sim, a série era violenta. Tal violência condizia—em bem menor escala—com a real violência usada pelos cartéis, e que hoje transcende a fronteira Mexicana. Tanto ao sul, quanto ao norte.

O mais recente episódio do desaparecimento de 43 estudantes da Universidade Rural Normal de Ayotzinapa no dia 26 de setembro último, após uma ação policial na cidade de Iguala (de 140 mil habitantes, localizada a 200 quilômetros da capital Mexicana), é um mínimo exemplo da ação do tráfico na deterioração de instituições oficiais daquele país—já que no processo para solucionar o caso, mais de 70 pessoas já foram presas por estarem envolvidas, incluindo o prefeito e a primeira-dama da cidade de Iguala, policiais, além de membros do Guerreros Unidos, o cartel local. No dia 27 de novembro, mesmo dia “em que foi anunciada uma reforma constitucional para combater o crime organizado no país, as autoridades do México localizaram [11] corpos decapitados na mesma região em que desapareceram 43 estudantes há dois meses”, reportou o Portal Fórum.

“O México está enfrentando sua pior crise política em décadas. A política dos EUA tem contribuído para a crise através do financiamento de forças de segurança corruptas responsáveis por crimes contra a sua própria população”, diz o texto “México em Crise: Financiamento da Guerra Contra as Drogas dos EUA, Ayotzinapa e As Violações dos Direitos Humanos, publicado no Site da organização Programa Americas do Centro Para Política Internacional. Segundo o texto, o investimento na guerra às drogas feito pelo governo dos Estados Unidos, somente no México, foi de aproximadamente 3 bilhões de dólares.

Aquela organização sugere que o financiamento à instituições provadamente corruptas, apenas piora a situação atual do México. “As forças de segurança do México rotineiramente violam os direitos humanos e assassinam jovens”, afirma o texto. Os resultados dos investimentos são caros e não apresentam resultados positivos: “100.000 assassinados por violência relacionada com a guerra às drogas; Mais de 25 mil desaparecidos, dezenas de milhares de pessoas forçadas a fugir de suas casas, milhares de órfãos e trauma psicológico incalculável; Covas coletivas clandestinas em Guerrero, Tamaulipas, Chihuahua e em outros estados com corpos não identificados; Aumento das violações dos direitos e da segurança física de transmigrantes no país; Aumento das violações dos direitos das mulheres e dos crimes sexuais, incluindo femicídio; Aumento de torturas e de execuções extrajudiciais”.

Os cartéis mexicanos também afetam outros países dentro da sua rota de tráfico, sendo também considerados uma das causas do crescente número de crianças que tentam atravessar, sozinhas, a fronteira rumo aos EUA. “A grande maioria das crianças migrantes vêm de Honduras, El Salvador e Guatemala—todas lutando com níveis de violência equivalentes a uma guerra regional não declarada”, diz o jornal The Guardian em um artigo de 9 de julho deste ano. O artigo complementa:

“Gangues de rua fortemente armadas, como a Mara Salvatrucha e Calle 18, impõem um reino de terror em bairros inteiros de toda a região [da América Central], a qual também é uma rota chave dos cartéis mexicanos e colombianos para o transporte de narcóticos rumo ao norte”.

Em meio a violência onipresente dos cartéis do tráfico, The Bridge também tentou refletir a realidade mística que floresce do caos. Os cultos religiosos, a crença do sobrenatural, assim como próprio uso de drogas e álcool, talvez sirvam como refúgio, conforto, ou como consolo para os horrores decorrentes da táticas violentas do tráfico. Na série, a apresentação de personagens que transcendiam a realidade da violência através de realidades paralelas, místicas e espirituais, também colidia com a realidade. Os personagens loucos, não eram apenas loucos. E nem todos os loucos eram os reais vilões.


A personagem Eleanor Nacht é um exemplo deste encontro da violência com a realidade paralela sobrenatural e mística na série. Tornando-se um grande destaque da segunda temporada, ela foi interpretada por Franka Potente—atriz que protagonizou o cult alemão Lola rennt (“Corra Lola, Corra”) de 1998.

A psicologicamente perturbada contadora do tráfico, Eleanor Nacht, interpretada pela atriz Fanka Potente. (Foto: Reprodução/Internet)

Eleanor Nacht era a contadora do traficante Fausto Galvan, que deixa um rastro de sangue por ela onde passa. Perturbada, violenta, e de aparência religiosa conservadora, ela é marcada por uma infância de abuso sexual cometido por seu pai—que foi posto em cativeiro para viver, literalmente, como um cachorro por ordens de Fausto Galvan quando Eleanor, ainda criança, é resgatada pelo chefão do tráfico. Ela acreditava ter sido vítima do demônio, de ter estado possessa por ele, parte de sua vida que ela carregava em seu corpo através de horrendas tatuagens e da prática do auto-flagelo.

O lado místico religioso esteve presente também na montagem de abertura da série que mostrava as luzes das cidades da fronteira à noite, mesclando-se com as luzes das velas postas nos altares públicos em memória a aqueles que foram levados pelo tráfico. Fausto Galvan construiu uma capela onde colocou o corpo de seu filho morto. Ao lado do corpo, coberta por um pano preto e como uma espécie de oferenda, encontra-se a cabeça do homem que matou seu filho conservada em um grande pote de vidro. Cenas de mães pendurando fotos de suas filhas desaparecidas em vias públicas entre velas, lágrimas e orações, constituindo verdadeiros santuários públicos. E a impressionante cena em que Franco, assassino profissional do tráfico, entra no apartamento de Raul (um travesti que deve morrer por ter falado o quê não devia aos dois jornalistas sobre sua tia e seu amante que trabalhavam para o tráfico), e o pega em um altar rezando frente a uma imagem de Jesus Cristo crucificado. Raul lhe pede que não use arma de fogo pois ele gostaria de continuar bonito depois de morto. O assassino lhe concede o pedido e crava uma faca no coração de Raul, que cai com os braços abertos, e antes de morrer diz, “Jesus”. A cruz no altar, à qual Raul rezava pouco minutos antes, é refletida na poça de sangue que se forma no chão. Naquele momento o assassino teve uma epifania, e passa a crer ter tido um encontro com Jesus, levando-o a se arrepender de seus atos, confessando seus 243 assassinatos a um padre, e dentro de uma igreja, ele conta seus crimes aos mesmos repórteres com quem Raul havia conversado, e lhes diz sobre suas vítimas: “Mas no final eu era gentil. Eu os ouvia, limpava suas lágrimas, e deixava que eles tivessem o seu momento”.

A cultura mexicana, altamente católica, apresenta um forte culto aos antepassados, onde o “Día de los Muertos” constitui uma das maiores comemorações do país, sendo celebrado ao longo de uma semana. Em seu célebre livro “O Labirinto da Solidão” (1950), o prêmio Nobel de literatura, o mexicano Octavio Paz, explica a relação do mexicano com a morte:

“Para os moradores de Nova York, Paris ou Londres, a morte é uma palavra que jamais se pronuncia porque ela queima os lábios. Ao contrário, o mexicano está familiarizado com a morte, zomba dela, a acaricia, dorme com ela, a celebra, é um de seus brinquedos favoritos e o seu amor mais firme. Verdade, em sua atitude talvez haja tanto medo quanto na atitude dos outros, mas pelo menos para ele a morte não está escondida: ele olha para ela cara a cara com impaciência, desprezo ou ironia”.

Essa familiaridade com a morte mescla-se à violência do tráfico criando novas crenças e novas formas de cultos. Em um artigo de 2010 para a National Geographic, a jornalista Alma Guillermoprieto explica o renascimento de uma antiga figura religiosa do México, La Santa Muerte:

“Ela é apenas uma dentre várias figuras sobrenaturais as quais os mexicanos recorreram enquanto seu país era dominado por todo tipo de dificuldades possíveis de acontecer—pela sêca, por um surto de gripe suína seguido de perto pelo colapso do turismo, pelo esgotamento das reservas de petróleo que é o principal produto de exportação, por uma crise econômica e, acima de tudo, pela dádiva miserável do tráfico de drogas e sua violência altamente divulgada e macabra. Embora o número total de homicídios no México tenha realmente diminuído de forma constante ao longo das últimas duas décadas, os crimes cometidos pelos comerciantes de drogas são insistentemente hediondos e desorganizaram o Estado de direito de tal maneira que os mexicanos comuns se perguntam regularmente em voz alta se ‘las máfias’ já venceram a sua guerra contra o Estado mexicano”.

La Santa Muerte existe por muitos anos, muito embora suas origens não sejam claras, alguns dizem que ela é a reencarnação de uma deusa azteca que governa o submundo, ou que teria surgido na Espanha medieval. E embora tivesse sempre sido cultuada por poucos devotos, hoje em dia ela é cultuada pelos muitos que fazem parte das atividades ilícitas das drogas, bem como pelos tantos que temem o narcotráfico. A devoção à santa vem aumentando também nos Estados Unidos. No episódio Calaca da primeira temporada, um grupo de imigrantes atravessando o deserto, já dentro dos EUA, se depara a um santuário para La Santa Muerte. Estes imigrantes logo depois são envenenados pela água que eles encontraram em grandes galões deixados pelo assassino em série. Muito embora The Bridge não tenha feito, além daquela cena, uma menção direta a La Santa Muerte e seus devotos (como a feita em Breaking Bad), a devoção espiritual, a crença mística e sobrenatural permearam fortemente a produção da mesma forma que religião e misticismo estão fortemente presente na realidade da fronteira.

O retrato atípico do mexicano dentro de uma produção audiovisual dos EUA, foi outro fator importante da série. The Bridge, de certa forma, subverteu a visão tradicional dos protagonistas de TV estadunidenses: um herói mexicano—assim como o fez o filme de Roberto Rodriguez Machete de 2010. Desde a guerra travada pelos EUA, de 1846 a 1848, para a conquista de 1,300,000 km quadrados do território do México, que iniciou com a anexação do Texas em 1845, o mexicano “inimigo” e vilão permaneceu cravado na imaginário da cultura pop dos EUA. Seguindo a iconografia clássica hollywoodiana dos famosos filmes “Faroestes”, mexicanos—e índios—são bandidos; mexicanos são preguiçosos e corruptos. O atual sentimento anti-imigrante de um segmento significativo da população estadunidense, ainda vilaniza o mexicano como ladrão de empregos.

Demián Bichir interpretou o detetive mexicano Marco Ruiz. (Foto: Reprodução/Internet)

Dos mexicanos e índios aos nazistas alemães, dos russos comunistas aos árabes terroristas (com exceção da atual série The Americans, e sua perspectiva histórica dos espiões russos nos anos 1980), os vilões nos EUA são preferivelmente os “outros”. O público estadunidense escolhe se ver como o verdadeiro herói da TV e do cinema. Mas teria o personagem Marco Ruiz, um herói mexicano, incomodado o público estadunidense? Ou seria o retrato da realidade do narcotráfico e da subsequente bem cara e falida guerra contra o narcotráfico, uma realidade incômoda?

Talvez, a razão pela perda de audiência não esteja vinculada a nenhuma das duas hipóteses acima. (Talvez tenham sido as longas, e impopulares, legendas para os diálogos em espanhol.) Haviam falhas técnicas na produção da série The Bridge? Certamente. Mas nenhuma falha que qualquer outra série de televisão hoje em dia não apresente, como por exemplo, The Blacklist (“A Lista Negra”), que mesmo sendo uma série de outro canal (NBC, transmitida pelo canal Sony no Brasil), e ainda podendo ser considerada bom entretenimento, torna-se altamente problemática se comparada ao nível da qualidade de atuação, enredo, personagens, e ao roteiro de The Bridge.

No Brasil o último capítulo de The Bridge foi ao ar no início de setembro, e nos deixou cheios de curiosidade sobre como seria a terceira temporada que daria final a algumas tramas deixadas semi-abertas. A falta de público é um argumento razoável e válido para que uma série seja cancelada. Contudo, a decisão do público dos EUA em não assistir a série, infelizmente, afeta o público internacional.

Resta-nos torcer para que surja interesse de um outro canal, ou mesmo que a Netflix se interesse em produzir, pelo menos, uma última temporada da série The Bridge.

c&p

Fonte: Jo Tuckman, “‘Flee or die’: Violence drives Central America's child migrants to US border”, em The Guardian; Alma Guillermoprieto, “Troubled Spirits”, em National Geographic; Proyecto Ensayo Hispánico; Hey, Don’t Judge Me (We Really Love TV.).

8 comentários:

  1. Também lamentei pelo cancelamento desta série no ano passado. Com a chegada da segunda temporada, todas as tramas se intensificaram à medida em que Marco Ruiz e Sonya Cross se distanciavam - ainda que ambos estivessem envolvidos na mesma investigação de alguma forma sob perspectivas diferentes. E a galeria de personagens bizarros - ainda que chamativos e curiosos - também cresceu com adição de Eleanor Nacht. Já na primeira temporada, o sequestro e desaparecimento de mulheres sinalizava uma trama maior a ser trabalhada na temporada seguinte e, se houvesse uma terceira, creio que este ciclo poderia encontrar um desfecho, bom ou ruim para os personagens que restavam. Outra questão a mencionar é que no início da série, a parte que conferia ao México era mostrada de forma bastante estereotipada, contudo, com o transcorrer dos episódios, mais daquela cultura foi sendo desmontada e, pelo que vemos nos noticiários, é difícil crer que o que fora retratado na série não fica distante do que acontece na realidade. É uma pena que esta série tenha sido descontinuada.

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    1. André,

      Desculpe-nos por responder seu comentário com tanto atraso. É muito bom saber que não fomos os únicos a sentir com o cancelamento da série. Pelos detalhes que você mencionou, dá para notar que você também é um grande fã de The Bridge.

      Obrigado por seu comentário.

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  2. Comecei a assistir a série agora pela netflix e li sua matéria por cima com receio de encontrar spoiler, mas gostaria de deixar registrado q o enredo me chamou muita a atenção espero não me decepcionar no final da segunda temporada. Na verdade mesmo antes de chegar lá já torço por uma terceira.
    Coxare

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    1. No final da 2a temporada você vai ver como uma 3a temporada seria algo mais do que apropriado. Obrigado pelo comentário.

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  3. Estou adorando a serie. Ja tem algum posicionamento sobre a terceira?

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  4. Acabei de assistir o final da 2ª temporada na Netflix. Concordo com todos que deveria haver a 3ª. Gostei muito da série, dos atores e seus personagens, da fotografia, e claro principalmente do roteiro, uma aula de roteiro aliás. Agora posso até estar enganado, mas o namorado daquela que ficou viúva no início, que queria fugir pro Alaska, não teve desfecho, e o adolescente que escapou da chacina de Fausto Galvan levantou e também não influiu no enredo. E a mulher do Hank, citada durante os episódios nunca apareceu. Claro, pode ter me passado desapercebido, e até eu estar equivocado, mas...
    Os protagonistas que viveram o Marco Ruiz e a Sonia Cross estão de parabéns, tanto como a atriz que fez a Eleonora, fria e odiável até o fim.
    Torço para que novos episódios sejam produzidos, e acho que o Marco e a Sonia deveriam ficar juntos, ou ele voltar para a mulher, que sumiu também, enfim vários enredos que renderiam ainda...

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    1. Sim, a série foi cancelada e assim o público ficou sem o desfecho de várias tramas.

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  5. Tudo que eu precisa saber, encontrei nesse artigo. Mesmo o spoiler, pra mim irrelevante. AO lado de The Fall, adorei. O tema é complicado, mas bastante real. Só em fugir da hipocrisia, já tem minha aprovação.

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