O ator Dominic Chianese (como Uncle “Junior” Soprano) e a atriz Robyn Peterson (Bobbi Sanfillipo) no episódio “Boca” da série “A Família Soprano”. (Reprodução/Internet). |
O episodio “Boca” (9o. episódio da 1a. temporada) da altamente celebrada série da HBO “Os Sopranos”, apresentou uma cena que acabou se tornando um momento clássico para a discussão da masculinidade na televisão. No episódio, o personagem Corrado “Junior” Soprano, o tio mafioso do mafioso Tony Soprano, está em Boca Raton, uma cidade balneário turístico da Flórida, com sua namorada Bobbi Sanfillipo.
Na cama do quarto do hotel onde estão hospedados, Junior ordena Bobbi a manter os detalhes da vida sexual deles em total segredo. Mais especificamente, ele pede a ela para não revelar que ele gosta de satisfazê-la oralmente. Ela pergunta o porquê:
Junior: Porque ‘eles’ acham que se você chupa xoxota, você vai chupar qualquer coisa.
Bobbi: Ah?! Você tá brincando.
Junior: Isso é um sinal de fraqueza. E é possivelmente um sinal de que você é um ‘fanook’ [viado, no vocabulário da máfia].
Bobbi: Viado? Isso é ridículo. Como é que uma coisa poderia estar relacionada à outra?
Junior: O quê se há de fazer? Não sou eu quem faz as regras.
Katherine Hyunmi Lee em seu artigo “The Ghost of Gary Cooper: Masculinity, Homosocial Bonding, and The Sopranos” (O Fantasma de Gary Cooper: Masculinidade, Vínculo Homosocial, e Os Sopranos”), analisa a cena:
“A alusão que Tio Junior faz a ‘eles’ e ao admitir que ele ‘não cria as regras’, significa que ele adere aos códigos heterosexistas masculinos (ou neste caso, ele mantém a aparência desta adesão), mesmo que as origens destes códigos sejam desconhecidas a ele e mesmo que estes códigos não façam nenhum sentido. De fato, assim como a incredibilidade de Bobbi deixa claro, aquelas ‘regras’ parecem altamente ilógicas: Junior teme ser visto como um homem menos poderoso, ou mesmo como gay, por desempenhar um ato heterossexual”.
Quando se tenta falar, discutir, ou definir o que é ser Homem sempre temos como referência as antigas construções e regras de gênero. Mas assim como o tio Corrado “Junior” Soprano, tendemos a não questionar a validade destas construções em relação ao estilo de vida que vivemos com o temor de sermos tachados de menos homens, mesmo estando totalmente despidos do medo de sermos hipócritas.
Isso gera a possibilidade para que surja um tipo de discurso que tenta nos dizer o quê é ser homem sem oferecer nenhuma novidade, mas que insiste no velho. A última inovação, contudo, é a utilização da teoria do terror que propaga o risco de extinção do homem de verdade. Esta falsa teoria geralmente cria uma noção reducionista de masculinidade; ou seja, sempre apresentada no singular, gerando a falsa ideia de que só há uma única forma de ser homem (como sugere o artigo de Scott Barry Kaufman, O Mito do Macho Alfa) e que qualquer outra forma de masculinidade constituiria um homem de mentira. (Além, é claro, de trivializar e banalizar a real dimensão do perigo de extinção ao qual algumas espécies animais estão verdadeiramente expostas.)
Este tipo de discurso hoje está por todas as partes, e entre eles, há dois recentes exemplos desta ideia de “extinção do macho”. Interessantemente, estes exemplos também expõem a alta comicidade do tema, de maneiras bem distintas.
O primeiro é a recente campanha publicitária de desodorante que introduz a marca Old Spice no Brasil, uma bem antiga companhia de produtos de higiene pessoal masculina dos EUA. Tal campanha recicla antigas visões do que é ser homem com H com as novas tecnologias hollywoodianas bem ao estilo filmes de ação, e tem como destaque principal, a masculinidade do ator Malvino Salvador. Obviamente este anúncio comercial tem um caráter cômico. A Old Spice faz uma brincadeira sobre como o homem de verdade deveria ‘cheirar’ através da apresentação exagerada de características masculinas.
A campanha tem um narrador que lembra muito aquela voz que anuncia os próximos lançamentos cinematográficos nas salas de cinema. E no comercial da Old Spice, essa voz grave nos diz:
“Vocês são os sobreviventes de uma espécie em extinção: O homem ‘Homem’. O Homem que sabe incendiar o encontro; o Homem que sempre chega lá, não importa como. A missão de Old Spice é trazer de volta o orgulho de ser e cheirar como Homem. O futuro da ‘homenidade’ está em suas mãos: chegou Old Spice, o desodorante do homem “Homem”. O único com partículas de ‘cabra macho’. Atenda o chamado, se for homem”.
Este anúncio comercial além de tentar conquistar o público brasileiro, faz parte de uma radical mudança de estratégia de marketing da companhia que, desde 2010, tenta conquistar o público jovem (inclusive o que saía da puberdade), um público mais tecnologicamente sofisticado estadunidense transformando uma velha imagem da Old Spice nos EUA: A Old Spice era associada a loção após a barba do vovô. É interessante notar que a primeira dessas novas campanhas publicitárias da Old Spice de 2010 nos EUA, usou o ex jogador de futebol americano e ator negro, Isaiah Mustafa como o perfeito homem romântico que se dirige diretamente às mulheres mostrando “O Cheiro Que Poderia Ser do Seu Homem”. A marca ainda vem usando atores negros em seus comerciais nos EUA, como a gritaria musculosa de Terry Crews, ator, e também ex-jogador de futebol americano, conhecido no Brasil pelo seriado “Todo Mundo Odeia o Chris”.
A Old Spice sabe que tem que renovar para garantir consumidores de todas as faixas etárias e, no Brasil, escolheu brincar com os velhos preceitos de masculinidade, o que poderia ser borocoxô caso não fosse adicionado o toque moderno e satírico. Na campanha brasileira, por exemplo, “O homem que sabe incendiar o encontro,” de repente larga a mulher sozinha e sai correndo, em meio a explosões, para ver um veleiro (marca registrada da Old Spice) chegando, e junta-se a vários outros homens pasmos com a grande embarcação que aporta na cidade com o novo produto. Interessantemente, nenhuma mulher foi atraída pelo cheiro do Old Spice—supondo que o barco cheire ao produto que carrega.
Mesmo sendo uma ótima paródia de um filme de ação, é altamente possível que em algum dia no nosso futuro aquela voz grave nos volte à mente dizendo que os homens com “H” realmente estão em extinção. E essa voz talvez se misture à outras vozes que, a sério, façam do assunto um tema político. A realidade é que muitos acreditam em qualquer mensagem, e outros muitos acreditam em qualquer coisa. E isto pode ser perigoso. Ou simplesmente, bastante hilário.É claro que muitos ainda se lembram das mensagens publicitárias do desodorante Axe, que apresentava o “efeito Axe”, efeito mágico que prometia que uma chuva de mulheres lindas caísse em cima dos homens que o usassem. Pois é… Em 2009 um homem na Índia resolveu processar a Unilever, fabricante do cheiroso e irresistível desodorante, sob a alegação de propaganda enganosa já que ele usou o produto, por muito tempo, mas ainda assim se encontrava solteiro. A Uniliver foi alvo de outro processo na Nigéria, onde um homem alegou que ao usar o creme dental Close-Up não conseguiu uma mulher “instantaneamente”. Ou seja, o “efeito Close-Up” não ocorreu.
Claramente estes são exemplos do extremo da fé posta nas mensagens de campanhas publicitárias. Porém, é revelador o fato de que as mensagens publicitárias dos produtos de higiene masculina se concentrem em como conseguir mulheres de forma mágica.
Na verdade, os produtos de “higiene pessoal” são primordialmente úteis para se manter a boa saúde e, consequentemente, uma boa aparência. Isto ajudaria na conquista de um bom emprego e, com um bom emprego pode-se conquistar parceiras sexuais, ou simplesmente ajudar no sustento de uma família. Esta é a real magia da higiene.
O segundo exemplo de discurso sobre a extinção do homem de verdade que clama uma única forma de ser homem, é o artigo de Rodrigo Constantino publicado em 14 de julho deste ano revista Veja, que tem como título a pergunta “Onde foram parar os machos?”. Nele, o colunista, entre outros exemplos oferecidos para sustentar seu principal argumento da modernização do homem extinguindo os machos de verdade, escreveu:
“Estou apenas chamando a atenção para o fato de que o ‘macho’ atual, segundo os moderninhos, não tem mais nada a ver com o que sempre foi visto como macho. O sucesso das séries de TV como Sopranos e Breaking Bad pode muito bem ter ligação com o resgate dessa visão de macho hoje perdida. Esses anti-heróis erram muito, mas ao menos preservam a ideia de que cabe ao homem ser bom provedor da família e fim de papo”.Constantino baseia a sua definição de “homem de verdade” nos anti-heróis de séries de TV que são: criminosos. Em Os Sopranos, por exemplo, o anti-herói não tão somente “erra muito” como sugere Constantino, mas ele, sim, é um mafioso que “provê a sua família” através de roubo, formação de quadrilha, corrupção política, agiotagem, chantagem, suborno, tráfico e venda de drogas, prostituição, intimidação através da violência (lesão corporal, geralmente, grave), e de inúmeros assassinatos e execuções—ele inclusive mata membros de sua própria família!—, além de vários outros crimes.
Mas isto não é o “fim de papo”.
Vale muito lembrar que Tony Soprano foi alvo de um complô de assassinato montado por sua própria mãe e por seu tio macho Junior Soprano. E, para quem realmente assistiu a série da HBO, sabe que o seu sucesso se deu exatamente pela forte e perturbadora crítica que esta fez, dentre várias, da decadência de uma família patriarcal que está frequentemente sob os riscos físico e emocional, dentro e fora do lar.
Com isso, é importante destacar que diferentemente do Tony Soprano e do seu tio Junior Soprano, não são todos os homens que fazem parte de um grupo de socialização masculina, relativamente secreto, e que sobrevive através de atividades ilícitas e criminosas onde um código de honra masculino assegura a sobrevivência daquele grupo perante a lei.Alguns dos membros do elenco de “Os Sopranos” que foram mortos (direta e indiretamente por Tony Soprano) durante o programa: Da esquerda para a direita, o ator David Proval (Richie Aprile), Vincent Pastore (Sal “Big Pussy” Bonpensiero), a atriz Annabella Sciorra (Gloria Trillo), um modelo e o adereço de um cabeça substituindo o ator Joe Pantoliano (personagem Ralph Cifaretto que foi decapitado), Drea de Matteo (Adriana La Cerva), e o ator Steve Buscemi (Tony Blundetto). (Vanity Fair). |
Mas um texto com exemplos e argumentos tão facilmente contestáveis só faz sentido quando o lemos como sendo um texto de natureza satírica. E é aqui se faz necessário apontar que Rodrigo Constantino poderia na verdade, estar se utilizando da sátira em sua escrita de forma primorosa.
Seguindo esta hipótese, poderíamos dizer que Rodrigo Constantino incorpora um personagem, oferecendo uma atuação performática e caricata bem interessante daqueles conservadores auto-intitulados como combatentes do mal do politicamente correto. Com isso, ele se torna uma versão brasileira brilhante do trabalho do comediante estadunidense Stephen Colbert em seu programa The Colbert Report do canal Comedy Central, onde o comediante incorpora um arrogante e pouco inteligente comentarista de direita que entrevista personalidades e faz comentários políticos e de comportamentos sociais usando frases de efeito.Sophia A. McClennen e Remy M. Maisel dizem que Stephen Colbert cobre uma gama de atuais questões sociais urgentes através da sátira. Elas argumentam que “o estilo satírico distinto de Colbert ensina os telespectadores de que a lógica, a razão, e os fatos têm sido cada vez mais substituídos por comentarismos e polêmicas, arrogância e falsos argumentos”. Além disso, as autoras complementam, “ele redefiniu os parâmetros do que significa ser um intelectual público e um artista investido socialmente”.
O estilo satírico colbertiano que Constantino parece utilizar, fica mais claro em um segundo artigo publicado em 15 de julho de 2014 que oferece “mais detalhes sobre o tema” do desaparecimento do homem de verdade “devido à grande repercussão” do primeiro artigo (publicado 1 dia antes), e que usa a campanha publicitária da Old Spice (que teria despertado “a fúria da patrulha”) para ilustrar o homem que deveria ser cultuado (em oposição ao modelo “Justin Bieber” hoje venerado) pelas mulheres. Isto além de continuar sua crítica às feministas (“ressentidas” que “odeiam os homens”) e, é claro, à “ditadura gay”.
A sátira que Constantino (mesmo que inconscientemente) faz da direita contemporânea é brilhante por esta ainda não ter sido compreendida (ou desvendada) como tal pelo grande público brasileiro, nem mesmo quando foi claramente exposta no seu artigo sobre a teoria da conspiração comunista do PT presente no logotipo da Copa 2014. Aquele artigo é o exemplo claro de seu estilo satírico, construído pelo alto nível de consagração do absurdo enquanto verdade absoluta, simplesmente usando termos clichés parte do atual vocabulário da direita—elemento central da comédia stephencolbertiana em seu cômico ataque aos “liberais” nos EUA.
Entretanto, esta sátira camuflada enquanto verdade (talvez pela falta daquelas gargalhadas dos programas humorísticos de rádio e de TV), torna a escrita de Constantino um tanto quanto perigosa. Perigosa principalmente à direita que é afetada, por tabela, por alguns leitores auto-representativos desta ala política que se arriscam a se auto definirem como pouco inteligentes por defenderem, verdadeiramente, as ideias cômicas e os argumentos absurdos do colunista. Desta forma, mesmo que talvez não intencionalmente, Constantino critica a tese de extinção do verdadeiro homem (que ainda precisa ser bem melhor elaborada), evidenciando a decadência do discurso que eleva a importância de antigos valores masculinos enquanto reais e absolutos.Vale a pena repetir. Embora a bem feita campanha publicitária da Old Spice (que usa o exagero) e o texto de Rodrigo Constantino (sátira) sejam divertidos e cômicos, ambos ainda podem soar como verdade e exercer um poder de sedução nos homens realmente inseguros de suas masculinidades, nos meninos ainda em formação, e nos homens apenas muito apegados ao culto do tradicional e que por isso não conseguem ver grandes e fortes possibilidades contidas no novo—como Grug Crood de “Os Croods” (2012).
O fato é que hoje vivemos, sim, em um mundo que requer novas habilidades sociais, técnicas e profissionais para a sobrevivência não só do homem, mas para evitar a extinção do ser humano em geral, sem falar do seu meio ambiente realmente ameaçado. Não sei dizer se isso requer uma intervenção nas novas formas de comportamento masculinos, mas certamente requer uma mudança no comportamento masculino tradicional, que nem mesmo consegue se ver como a verdadeira causa da sua própria suposta extinção—levando em consideração a também suposta alta taxa de dissidência de membros deste grupo (os que optam ser “moderninhos”, por exemplo).
Às vezes podemos não saber quem cria as regras, mas claramente sabemos que ser homem de verdade não se baseia em colher côco dando um chute no coqueiro ou fazer um pacto de sangue com o crime. Porém, não questionar a validade de algumas regras da masculinidade e não tentar mudá-las, ao invés de exaltar alguns de seus elementos mais ultrapassados e nocivos (que também castram os homens, como no caso do tio Junior Soprano), talvez venha a ser o início do processo de extinção daquilo que possa haver de melhor no homem de verdade, como: dedicação ao trabalho; responsabilidade com o bem-estar familiar e comunitário; sua dignidade como ser humano; honestidade; e o repeito a si mesmo e também ao próximo. Esses são os valores que hoje fazem grande falta como um todo e que não estão sendo suficientemente acentuados.
E mesmo aqueles homens que realmente se encontram em crise (seja lá o quê isso realmente possa significar, e não descartando uma real existência da mesma), sabem ou deveriam saber que masculinidade é multidimensional e que não pode ser somente definida através dos discursos de campanhas publicitárias que vendem cheiro. Devemos aceitar que há uma diversidade dentro da população masculina; ou seja, há vários tipos de homens, diversos tipos de macho, e cada um deles com personalidades, e cheiros, diferentes.
Enquanto nós Homens continuamos a dizer "Isso é coisa de mulher" ou "isso não é coisa de Homem"...As mulheres não fazem cerimônia alguma em arregaçar as mangas e não ver diferença nenhuma no trabalho, no comportamento e nas tarefas, e estão dominando o mundo!
ResponderExcluirAs mulheres não querem um "Macho", querem um Homem, de preferência que não seja Gay.
Oi José,
ExcluirMuito legal e pertinente a sua observação sobre a atitude da mulher de hoje (quebrando convenções e continuando “mulheres”), principalmente se olharmos esta atitude em face à nova realidade social e tecnolonógica que já nos deparamos.
Quanto a sua observação de que a mulheres querem um homem, “de preferência que não seja Gay”, soa meio redundante assumindo que você esteja se referindo a parceiro sexual.
Obrigado pelo comentário.