Entendendo o Significado Cultural-Ofensivo do Peido

Este bonnacon (animal mítico asiático) de um manuscrito medieval parece estar, como em um ataque, peidando na direção do guerreiro que parado segura uma espada com a mão direita, e usa o braço esquerdo para levantar o escudo como que se protegesse dos gases intestinais detonados pelo mítico animal.
Autor desconhecido; Biblioteca Nacional da Dinamarca; Biblioteca Real da Dinamarca; Kongelige Bibliotek; Gl. kgl. S. 1633 4º, Folio 10r.
(Image: Wikimedia Communs)

“A antropóloga Kirsten Bell, inspirada a traçar a história da nossa relação com o peido, se deparou com um beco sem saída. ‘Antropólogos estudam quase qualquer coisa’, ela diz, ‘mas eles parecem desinteressados em estudar o peido’”.


Existem coisas que nos deparamos diariamente e que não discutimos. O ato de soltar gases é uma delas. Mas ao mesmo tempo em que preferimos fingir acreditar na sua não existência, o peido é algo real e ainda é motivo de constrangimento tanto individual quanto coletivo. Porém, hoje mais do que nunca o peido tem se tornado motivo de piada na cultura pop onde podemos ver o seu uso crescente no mundo do entretenimento.

O polêmico músico francês, Serge Gainsbourg, que em 1976 escandalizou a igreja com o filme e a música tema de título homônimo Je t'aime moi non plus (filme que no Brasil recebeu o título de, “Paixão Selvagem”) voltaria a encandalizar novamente os mais pudicos com o seu único romance “Evguenie Sokolov” (1980). O livro conta a estória de um jovem artista que usa seus gases intestinais como meio escandaloso de expressão artística, transformando o problema barulhento e fedorento que afetava negativamente a sua vida social e sexual em uma receita de sucesso no mundo das artes do início dos anos 80.

Um exemplo mais atual é o uso constante desta expulsão de gases do corpo humano nos desenhos para o público adulto “South Park” e “Family Guy” (“Uma Família da Pesada”). Nessas duas séries de animação a flatulência é usada como sátira às comédias de riso fácil também presentes em alguns longas de Hollywood.

Mas o que se passa no mundo acadêmico? Existe algum estudo sobre o peido através de uma visão sociocultural? No dia 24 de abril deste ano, Colin Schultz escreveu um artigo curioso para a Revista do Instituto Smithsonian que questiona o porquê do popular e humano “peido” nos isultar tanto, a partir de um texto escrito pela antropóloga Kirsten Bell que estuda o valor cultural do peido.

O cúlti & pópi traduziu o texto do Colin para os nossos leitores.



Antropólogos Estão Com Medo de Indagar Sobre o Peido
Por que os peidos são universalmente ofensivos?

A maioria das culturas tratam a flatulência como algo abominável; ela invade os sentidos, ofende aqueles que são pegos no meio da explosão, trazendo vergonha ao culpado. Mas peidar é um ato universal—um subproduto da condição de ser um ser humano com os intestinos funcionando bem e atuando como saudáveis anfitriões de codependentes micróbios. Então por que nós, como seres humanos, parecemos odiar tanto os peidos?

A antropóloga Kirsten Bell, inspirada a traçar a história da nossa relação com o peido, se deparou com um beco sem saída. “Antropólogos estudam quase qualquer coisa”, ela diz, “mas eles parecem desinteressados em estudar o peido”. (Talvez seja difícil conseguir financiamento para o campo de estudos sobre a flatulência?)

“Podem tachar isto como uma curiosidade insaciável sobre a condição humana, como uma fixação anal freudiana, podem chamar isto como quiserem, mas eu, pessoalmente, não estou disposta a deixar este assunto passar em branco”, diz Bell em seu texto para a PopAnth sobre sua busca sobre o pouco que sabemos sobre a importância cultural do peido.

Escavando a literatura, Bell descobriu que o peido é quase que universalmente um insulto, com várias culturas em vários períodos da história construindo rituais elaborados para lidar com tal emissão de gases.

“O livro Aroma: the Cultural History of Smell (Aroma: A História Cultural do Cheiro) de Constance Classen, David Howe e Anthony Synott, há uma única página que discute peidos, onde os autores notam que no Marrocos ‘vigora a tradicional crença de que soltar gases dentro de uma mesquita causará cegueira, ou mesmo a morte, dos anjos que lá estiverem’. Eles ainda observam que o peido é tão fortemente associado aos maus espíritos que o lugar onde os peidos ocorrem podem ser marcados com pedras empilhadas, como que para ali prender aqueles maus espíritos”.

Mas por que nós nos enojamos tanto com os peidos enquanto outras coisas, como tossir e espirrar, não carregam tanto peso negativo?

Kirsten Bell descobriu uma análise relevante feita por Benjamin Franklin (sim, verdade): “Não fosse pelo cheiro odiosamente ofensivo que acompanha tais emissões, as pessoas educadas provavelmente estariam sob menor restrição para descarregar os tais ventos em público como assim o estão para cuspir ou assoar seus narizes”.

Para Bell, o cheiro e a natureza gasosa do peido são a chave do mistério. Peidar representa não somente apenas um cheiro sujo, mas também representa uma imposição de um ser humano sobre outro ser humano, uma invasão dos sentidos e uma quebra do espaço pessoal.

“Os peidos podem muito bem ser vistos como a penúltima emissão corporal. Eles são provavelmente vistos como bem mais poluidores do que outros excrementos corporais tal como as fezes, porque no fundo, eles são invisíveis. Nós não podemos efetivamente evitá-los. Enquanto podemos contornar as fezes, sangue e urina, ou reclamar com o garçom se encontramos um fio de cabelo na nossa sopa, pouco se pode fazer para nos proteger da invasão sensorial do peido”.

Iremos parar de peidar? Provavelmente, não. Já existiu alguma cultura na história humana que, ao invés de segurar seus narizes e ofegar, já amou, apreciou e venerou o peido? Quem sabe. E a não ser que antropólogos deixem de lado o desinteresse em descobrir, nós nunca iremos saber.


Colin Schultz é um escritor de ciência freelance e editor radicado em Toronto, Canadá. Ele bloga para o Smart News e também é contribuidor do American Geophysical Union. Ele é formado em ciências físicas e filosofia, e é mestre em jornalismo.

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