Arrastada Várias Vezes Pelo “Espetáculo de Violência” da Mídia


Na “sociedade do espetáculo” consumimos qualquer coisa, e quase sempre com muito entusiasmo.
(Foto: Reprodução/Internet)

O caso da moradora do Rio de Janeiro que foi baleada e depois assistir a cena em vídeo desta mesma mulher sendo arrastada pelo veículo da polícia, chocou a todos. No entanto, a repetição incessante daquela cena por inúmeras várias vezes, mostra que a mídia jornalística produz um “espetáculo da violência” que revela o prazer sádico dos que produzem e dos que consumem notícias.

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Como consequência da cultura da violência, um bom número da população reage de maneira entorpecida, de forma quase natural, a atos de violência cometidos todas as horas no Brasil. E é também pelo fato do número dos casos de homicídios serem tão altos e rotineiros, que o estado do Rio de Janeiro tem a violência como o seu verdadeiro cartão postal. Para a grande maioria de seus moradores, a beleza natural do estado já se foi, hoje podendo ser somente vista de cima, de helicóptero.

Mas mesmo que os moradores cariocas e fluminenses possam já estar acostumados com as notícias e com as cenas de violência grotescas, tudo deveria ter limite. Incluindo o formato explorativo pelo qual o telejornalismo brasileiro expõe estes casos e visualmente tenta explicar a gravidade deles, mesmo quando muitos destes casos não necessitem de imagens para chocar. Tudo pelo espetáculo da violência, onde o brasileiro é ao mesmo vítima e expectador.

Tudo faz parecer que os veículos de jornalismo disseminam imagens chocantes e constrangedoras de forma excessiva como estratégia de audiência. Mas seria este realmente o objetivo? Sendo ou não, muitas vezes as vítimas da violência acabam sendo sequestradas pela mídia, que as usa com um excesso repetitivo indevido.

Uma dessas vítimas morreu no último domingo, dia 16 de março. Uma mãe, uma moradora de uma “Comunidade”, foi supostamente baleada durante uma troca de tiros entre policiais e bandidos. Os PMs a colocaram na parte de trás do camburão para levá-la ao hospital. Durante o trajeto a porta de trás da viatura se abriu, lançando o corpo da mulher para fora, o qual ficou preso por sua roupa no para-choque traseiro do carro ainda em movimento. E assim ela foi arrastada pelo asfalto enquanto o camburão cortava os carros e os ônibus destemidamente por cerca de 250 metros.

Durante a segunda feira, um dia após o fato tão trágico, quem assistia a Bandnews, por exemplo, pode testemunhar a transmissão da notícia contendo um vídeo gravado por um motorista que seguia atrás da viatura da polícia. Mas quem assistiu a transmissão deste vídeo naquela rede de noticias (e não de news), não assistiu tão somente uma vez, mas sim várias e várias e várias vezes.

O Jornal Extra/O Globo, em seu portal na internet, aproveita a tecnologia e disponibiliza o vídeo, estampado como foto de primeira página, ao leitor onde este pode assisti-lo quantas vezes quiser. De novo: o usuário pode assisti-lo várias e várias vezes.

A repetição se tornou um modelo para a montagem do espetáculo midiático criado cuidadosamente para que o indivíduo seja morbidamente seduzido a assistir, mesmo resistindo, a recente cena que mostra a total falência da atual administração do estado. Aquela mulher, desta forma é arrastada pelo veículo da polícia, para depois ser arrastada várias e várias vezes pelos veículos de comunicação.

Alguns dos seus quatro filhos, assim como todos os seus parentes, amigos e vizinhos certamente verão ou saberão da veiculação daquelas cenas. Então, por quê os editores, jornalistas, os donos dos jornais, tornam a morte e a experiência da família desta mulher em um espetáculo midiático através da repetição descontrolada daquela cena?

Em 1967, o teorista francês Guy Debord em seu tratado “A Sociedade do Espetáculo”, disse que o espetáculo “unifica e explica uma grande diversidade de um fenômeno aparente”, argumentando que a sociedade da mídia e a sociedade de consumo estão organizadas em torno da “produção e do consumo de imagens, produtos, e eventos organizados”.

Desde então, as idéias de Dubord vêm circulando e sendo aplicadas por vários acadêmicos, propagadas pela internet e por outros sítios subculturais, como afirma Douglas Kellner (“Mídia, cultura e o triunfo do espetáculo”), que também usa a ideia de Debord aplicando-a na sociedade atual do novo milênio, dizendo que os “espetáculos da mídia” e a “cultura da mídia” incorporam os valores básicos da sociedade e disseminam estes valores de forma dramatizada ao individuo. Assim, o indivíduo passa a consumir aqueles valores sociais bem como o modo de vida que eles oferecem, incluindo: a dramatização dos conflitos sociais, suas controvérsias, seus conflitos, lutas e os “modos para a resolução destes mesmos conflitos”.

O espetáculo produzido pelos noticiários, quando repete incessantemente a cena violenta, como foi tratada a vítima da ineficaz polícia do estado do Rio de Janeiro, é um espetáculo usado como introdução para um futuro espetáculo que apresentará a população uma dramatização da resolução daquele conflito. E como é sabido, depois da transmissão incessante desta cena, outras cenas surgirão nos telejornais, e serão igualmente chocantes e espetaculares.

E serão estas novas cenas que talvez venham a servir como dramatização da resolução deste caso atual, e que nos dirá que o show não acabou, pois ainda existem mais cenas após os intervalos comerciais. E certamente outras cenas violentas virão, pois estas existem em “excesso”.

E excesso é o fator que Kellner vê como um elemento importante na cultura da mídia, observando-o em tudo: excesso de comida, excesso de carros, excesso de roupas, excesso de violência, excesso de celebridades etc. Inclusive o excesso e a fartura da erotização dos mais variados produtos através da propaganda e do marketing, por exemplo.

E é aqui que o mais interessante e perturbador elemento entra em questão. Quando Kellner nos diz que o excesso é um elemento típico dos espetáculos eróticos, mas que hoje está presente em quase todas as formas de “espetáculos da mídia”, isto pode revelar que o excesso de violência na qual se vive hoje em dia no Brasil também sofre um processo de erotização durante a produção deste tipo de espetáculo.

Considerando este argumento de Kellner enquanto válido, pode-se especular que o violento assim como o erótico, também apresenta os elementos morais do proibido (que a consciência humana aponta cautela: não assista), e da eventual culpa (depois de visto ou por demonstrar o desejo de assistir).

E é talvez por isso que, tanto as produções culturais que contenham violência quanto aquelas que contenham o erótico passam por uma classificação especial que vai determinar a idade de quem irá ou não assisti-las—o quê parece somente valer para obras de ficção, pois o corpo de uma vítima sendo arrastado pelo asfalto foi televisionado em diferentes horários, nos telejornais, e sem nenhuma advertência sobre o conteúdo a ser mostrado.

A repetição continuada de cenas que chocam e seduzem pelo excesso, nada mais é do que a estratégia do fetiche dos “espetáculos pornográficos” e que geralmente são reservadas somente a pornografia e ao sexo, fato que segundo Kellner, gera um novo gênero de pornografia. A mesma pornografia assexuada que foi, e ainda pode ser encontrada na repetição continuada das cenas dos aviões explodindo as duas torres do World Trade Center em Nova York, em 11 de setembro de 2011; cena que se estiver sendo exibida, certamente ainda seduzirá quem estiver passando em frente à TV. E mesmo que Kellner tenha registrado os eventos do 11 de setembro representando o “espetáculo do terror,” podemos ver as inúmeras repetições daquelas cenas de maneira descontrolada, também enquanto um exercício masturbatório que atendia um determinado desejo não sexual—que mais tarde atendeu ao desejo de vingança que desencadeou uma guerra.

Além da ausência de uma certa norma moral em busca de audiência, a única outra explicação para o fato da mídia jornalística mostrar a cena de uma mulher sendo arrastada pelo asfalto, e repetindo-a inúmeras vezes, é que este tipo de repetição pode ter se tornado objeto de prazer que leva os profissionais propagadores deste tipo jornalismo a atingirem seus vários orgasmos múltiplos. O complicado é a força colocada na disseminação deste tipo de prazer ao resto da população, onde grande parte desta não consegue resistir a tentação.

Esquecem-se que além de vítima de bala perdida e moradora da comunidade, a vitima era uma mãe, ela era uma tia, ela era uma esposa. Ela era uma trabalhadora de cidadania brasileira. E já que a polícia do estado não foi capaz de tratá-la com o respeito merecido aos seus—já humilhados em demasia—cidadãos, que a imprensa dê isso aos seus filhos, poupando-lhes do constrangimento de verem sua mãe sendo torturada pelo estado várias e várias vezes.

Não havendo no Brasil uma forte tradição de reportagem investigativa, substitui-se o Amarildo pelo repórter da Band, e o repórter da Band (personagem principal do “Espetáculo do Terrorismo”) foi esquecido em favor da próxima vítima. As atualizações sobre vítimas passadas são raras, mas quando retornam, ainda possuem o mesmo poder de seduzir nossa atenção, geralmente nos atualizando sobre o nada que foi feito. Isto quer dizer que por enquanto teremos que aguentar o gozo sadístico, do jornalismo e do expectador, sobre uma nova vítima de uma horrível e simplesmente inaceitável tragédia.

No espetáculo da violência somos todos agentes, somos vítimas e expectadores, e por sermos consumidores permitimos sua continuidade.


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