True Detective da HBO e o Gênero Literário da Weird Fiction


Os astros da série Woody Harrelson e Matthew McConaughey

True Detective, que em uma tradução literal significa "detetive de verdade", é a nova série da HBO e que acaba de entrar para a lista de séries de TV que conquista o coração de críticos e telespectadores, e ao contrário do que o título possa sugerir, não é baseada em fatos reais. Mas isso não impede que os elogios continuem caindo sobre a produção da HBO como mosca cai em cima de pão doce largado em balcão de padaria. O crítico Christopher Orr, do The Atlantic, classificou a série como "o melhor programa da televisão” e também afirmou que esta é

“a série mais envolvente na televisão hoje em dia, uma série que ostenta uma quase embaraçosa variedade de riquezas: atuações hipnotizantes do atual queridinho de Hollywood, Matthew McConaughey; uma atuação transformadora e apenas marginalmente menos notável do co-astro Woody Harrelson; uma estrutura intricada e um diálogo hiper-literato do escritor e criador Nic Pizzolatto; direção calibre cinematográfico de Cary Joji Fukunaga; e um formato antológico que tem o potencial de ajudar a mudar a maneira em que televisão de alto padrão é produzida”.

A série também tem conseguido altos índices de aprovação junto ao público, como os registrados nos sites Rotten Tomatoes, IMDB, Metracritic, e TV.com.

True Detective utiliza uma cronologia múltipla, que cobre 17 anos, para traçar a caça a um assassino em série por dois policiais da Divisão de Investigação Criminal da Polícia Estadual da Lousiana. E um fato interessante é que a série foi formulada dentro dos padrões de uma “série antológica” (anthology series), que é o nome dado a uma série de rádio ou televisão que apresenta uma estória e um grupo de personagens diferentes em cada episódios ou temporada. Isto faz parecer que a HBO segue a onda do canal FX e o sucesso do formato usado na fantástica série American Horror Story, criada por Brad Falchuk e Ryan Murphy, que é um perfeito exemplo atual do quê seria uma “série antológica”.

Mesmo que vários críticos insistam em dizer que True Detective não irá abordar o sobrenatural, eu me pergunto: Será que as semelhanças entre True Detective e American Horror Story vão parar por aí?

Muito embora já apresente os traços de duas das primeira séries de televisão que mudaram o rumo da dramaturgia da TV americana, como Twin Peaks de David Lynch (1990-91) que utilizou o drama de horror surrealista, e o drama de horror e ficção científica Arquivo X (1993-2002) de Chris Carter, True Detective pisa mais fundo na história quando seu criador retorna a gêneros literários dos século 19 em busca de inspiração.

No artigo "The One Literary Reference You Must Know to Appreciate ​True Detective" (A Referência Literária Que Você Precisa Conhecer Para Poder Apreciar a Série True Detective) publicado no site io9 no último dia 14, o escritor Michael M. Hughes descreve as várias referências feitas por Pizzolatto ao livro "The King in Yellow" (O Rei de Amarelo), uma coletânea de contos do autor Robert W. Chambers publicado em 1895. Hughes diz que "The King in Yellow" influenciou vários escritores e por isso o Rei e a sua lendária cidade “Carcosa”, talvez sejam o personagem e o cenário mais famosos que já se possa ter ouvido.

Hughes ainda afirma que “conhecer este livro é a chave para entender o mistério sombrio que está no coração da série”. Bem, ele define o "The King in Yellow" como “uma peça de teatro dentro de uma coleção de contos—um trabalho dramático metaficcional que traz desespero, depravação e insanidade aqueles que venham a ler ou assistir a peça. Chamber inclui somente algumas cenas do primeiro ato da peça na coleção de estórias. Este primeiro ato, nos é dito, é um pote de mel, atraindo os leitores ao texto amaldiçoado. Se eles lerem mesmo que algumas palavras do Ato II, eles serão levados à loucura pelas horríveis, decadentes, e incompreensíveis revelações sobre o universo.”

Esta descrição nos leva a crer que os detetives interpretados por Matthew McConaughey and Woody Harrelson estão à caça de algo muito maior do quê um assassino em série.

No entanto, o livro "O Rei de Amarelo" não é classificado exatamente como uma ficção de horror, mas sim como Weird Fiction, "Ficção do Estranho", que segundo o crítico literário S. T. Joshi em seu livro "The Weird Tale" (O Conto do Estranho) de 1990, é um “subgênero da ficção especulativa e que se originou no final do século 19 e início do século 20. Pode ser dito que o gênero abrange a estória de fantasma e outros contos do macabro. A ficção do estranho se destingue do gênero do horror e do gênero da fantasia por pré-datar os dois no nicho do mercado de gêneros de ficção. Por não ter convenções estilísticas ou de gênero estabelecidas, os contos do estranho misturam o sobrenatural, o mítico, e até o científico”.

O escritor H. P. Lovecraft (1890–1937), autor que recebeu grande fama póstuma por suas ficções de horror, adotou o termo do escritor irlandês de contos góticos do século 19, Sheridan Le Fanu, e o popularizou em seu ensaio "Supernatural Horror in Literature" (O Horror Sobrenatural na Literatura) escrito entre 1925-27, onde ele define o gênero de contos do estranho (weird tales):

“O verdadeiro conto do estranho tem algo mais do quê um assassino secreto, ossos sangrentos, ou uma silhueta coberta por um lençol arrastando corrente como regras a seguir. Deve haver uma certa atmosfera de tirar o fôlego e de inexplicável pavor daquilo que é de fora deste mundo, forças deconhecidas devem estar presentes; e deve haver uma evidência, expressada por um caráter de seriedade e de presságio tornando-se o assunto do conto, oriunda da concepção mais terrível que possa ser elaborada pelo cérebro humano—uma suspenção ou uma derrota malígna e específica das leis fixas da natureza que são nossas únicas salvaguardas contra os ataques do caos e dos demônios do espaço inexplicável”.

Já recuperado dos calafrios que senti durante a tradução do trecho acima, acho que vale a pena ressaltar que H. P. Lovecraft desenvolveu a filosofia do cosmicismo, ou “horror cósmico” como parte da sua produção dentro do gênero Weird Fiction. Cosmicismo, então, envolve práticas de ocultismo, possessões astrais e mestizagem alienígena.

Mas retornando ao livro "O Rei de Amarelo", representante do gênero Weird Fiction, vamos dar uma olhada em uma das menções que são apresentadas em True Detective. Michael M. Hughes observa que a primeira menção ocorre no segundo episódio da série. O detetive Rust Cohle (Matthew McConaughey) encontra o diário de uma jovem ex-prostituta, Dora Lange, que foi assassinada em estilo ritualístico, e ele lê uma passage do diário em voz alta: “Eu fechei meus olhos e vi o Rei de Amarelo se movendo pela floresta. As crianças do Rei estão marcadas. Elas se tornaram seus anjos”. No episódio ainda são mostradas as páginas do caderno onde Dora escreveu estas passagens do livro de Robert W. Chambers, que segundo Hughes, são copiadas verbatim, isto é, cópia literal do livro:

Ao longo da costa as ondas enevoadas se quebram
Os gêmeos sóis se põem por trás do lago
As sombras se alongam
Em Carcosa
Estranha é a noite onde estrelas negras se erguem,
E luas estranhas circulam pelos céus
Mas estranha ainda é
A perdida Carcosa

—The King in Yellow, Act I, Scene II

Segundo Hughes, as “estrelas negras” se tornam símbolos recorrentes na série e que, por exemplo, podem ser notadas em forma de tatuagem no pescoço do personagem Carla que é a primeira a alertar os detetives Cohle e Hart do envolvimento de Dora em uma estranha “igreja”.

A série vem sendo aclamada por vários aspectos, sendo que um deles é exatamente o bom nível literário dos diálogos. E isto acaba sendo revelador quando se aprende mais sobre a história de vida do escritor e criador da série, Nic Pizzolatto.

Em entrevista para o Los Angeles Times de 8 de janeiro deste ano, o escritor conta que cresceu na zona rural da Louisiana, a quilômetros de distância da cidade mais próxima, “no meio da justaposição surreal dos bosques idílicos e das enormes refinarias, algo como o cruzamento de uma ‘Tóquio estilo Blade Runner’ com onde quer que seja o lugar que os Transformers vivam”.

Interessantemente, Pizzolatto revela não haver livros em sua casa e que nela pouca ênfase foi dada à educação, mas ele acabou matriculado na Universidade Estadual da Louisiana com uma pequena bolsa para estudar Artes Visuais, tendo ainda dois empregos para poder pagar os estudos. Aí então, ele começou a ler, o quê ele afirma ter salvo sua vida. E ele continuou a estudar, e começou a escrever, e a publicar, tornando-se professor em uma universidade no estado de Indiana, mas ainda não satisfeito e sendo um grande fã das novas séries de TV, ele foi pra Hollywood.

Nic Pizzolatto, criador de "True Detective". (Foto de Luis Sinco, Los Angeles Times)

Antes de True Detective, Pizzolatto escreveu para a série do canal AMC, The Killing e é autor da coleção de estórias “Between Here and the Yellow Sea” (Entre Aqui e o Mar Amarelo) e do romance “Galveston,” que foi publicado em 2010 e que tem boas chances de ser adaptado para a telona. Sua experiência de vida de certa forma nos diz que o fato de alguém crescer não rodeado por livros não vai representar necessariamente um destino sem livros, ou mesmo um destino desprovido do talento literário.

Michael Calia, em seu artigo para o Wall Street Journal de 2 de fevereiro de 2014, diz que o trabalho de Pizzolatto é rico em terror similarmente aquele inerente ao trabalho de H.P. Lovecraft e que True Detective menciona palavras e imagens derivadas da antologia de estórias “The King in Yellow”. Como resultado, Calia acredita que a série abriu os mundos da ficção do estranho e do horror cósmico para um público mais amplo. Falando com Calia sobre os autores destes gêneros, Pizzolatto diz que entrou em contato com os mesmos, inclusive com a Ficção do Estranho, há seis anos atrás, e que para ele “a visão ficcional do desespero cósmico articulam as mesmas coisas que certos filósofos niilistas e pessimistas formularam, só que com mais poesia e arte e visão". E ele diz, "é importante para nós confrontar o potencial do verdadeiro abismo…”

E falando em abismo, no final de seu artigo sobre as referências de “O Rei de Amarelo”, Michael M. Hughes se pergunta para onde a série caminha. E discordando de alguns críticos que não acham que True Detective se move em direção ao campo do sobrenatural, ele acredita que a série pode ficar mais e mais estranha, e mais sombria. Mas Hughes se pergunta o porquê do uso de “O Rei de Amarelo” para em seguida responder que, obviamente, os detetives Cohle e Hart chegarão cada vez mais próximos à beira do abismo daquilo que Lovercraft denominou de Cosmic Fear (Medo Cósmico), ou seja, aquela “suspenção” ou “derrota malígna e específica das leis fixas da natureza que são nossas únicas salvaguardas contra os ataques do caos e dos demônios do espaço inexplicável”.

Bem, se este for realmente o caso, as semelhanças com a série American Horror Story só poderão aumentar.

E para quem gosta de uma história que desafia os nervos, certamente True Detective parece ser a pedida mais correta. Aqui no Brasil, o seriado estreou conjuntamente com sua estréia na HBO nos Estados Unidos, em Janeiro de 2014 e sua primeira temporada consiste de 8 episódios. Ontem foi exibido o 5o. episódio, o qual Andrew Romano em um artigo no The Daily Beast de ontem, chamou de o melhor episódio até agora, e os 60 minutos mais mais magistrais da televisão desde Breaking Bad, sendo também este episódio, Secret Fate (Destino Secreto), o episódio mais amado pelo próprio Pizzolatto.

True Detective, HBO, domingos à meia noite.


c&p

2 comentários:

  1. Carlos Moreno, um cineasta colombiano, apresenta em suas Guerras Alheias um dos documentários interessantes, da HBO, uma visão trágica da pulverização de culturas com herbicida é comprovada a causar câncer em pessoas. A não perder.

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