A terceira temporada do seriado Sherlock produzido pela BBC acaba de ter seu último episódio exibido. Este seriado, que juntamente com a produção do canal americano CBS, Elementary, são as duas mais novas produções que ressuscitam o personagem literário de Arthur Conan Doyle colocando-o no contexto contemporâneo.
Sir Arthur Ignatius Conan Doyle
(1859–1930)
|
Mas um artigo de Sarah Zielinski publicado na
revista do Instituto Smithsoniam no dia 3 de fevereiro deste ano, descreve
como os criadores do seriado também ressuscitaram uma teoria e uma prática dos
antigos gregos integrando-a na série como mais uma das formas pela qual a cabeça de
Sherlock funciona.
No Brasil a série Sherlock é exibida na BBC HD, parte do pacote da NET, mas também tem a turma que segue a saga pela internet, e por isso eu traduzi o artigo da Sarah que segue abaixo. No entanto, o artigo pode estragar alguns dos mistérios da temporada, mas a escritora, antes de entrar nesse mérito adverte aos leitores que vai inciar a parte “estraga prazeres”.
Artigo publicado originalmente na SMITHSONIANMAG.COM
Os Segredos do Palácio Mental de Sherlock: A série da BBC/Masterpiece sobre o detetive utiliza uma técnica de memórização inventada na Grécia antiga
A temporada de Sherlock terminou revelando uma nova
habilidade do mestre da dedução em desvendar os mais misteriosos dos mistérios:
a utilização do método mnemônico (do grego mnemonikós: relativo à memória; que ajuda a memória)
denominado de “Palácio da Mente”, ou “Palácio Mental”, desenvolvido na
grécia antiga. Mas é claro que sendo o Holmes (e a televisão), a versão do
Palácio Mental grego apresentada na série é um tanto quanto mais avançada.
Segundo o mito, o poeta grego Simónides de Ceos inventou a técnica após atender
a um banquete que teve um final trágico. Simónides saiu do salão para
encontrar-se com dois jovens, mas chegando ao lado de fora os dois rapazes não
estavam lá e o salão atrás de Simónides simplesmente desaba. Apesar de seus
companheiros de banquete terem sido esmagados de forma bem grave dificultando
o reconhecimento de seus corpos, Simónides supostamente foi capaz de reconhecer
por nome cada um dos corpos baseando-se no local no qual cada pessoa estava
sentada durante o banquete. Tal habilidade de ativar a memória para lembrar e
relembrar se tornou o chamado método loci (plural do latin locus, lugar), método
também conhecido como memória teatral, a arte da memória, palácio da memória e
palácio da mente.
Para se usar a técnica é preciso visualizar um local
complexo no qual se possa armazenar um conjunto de memórias. Geralmente este
local é um prédio, tal como uma casa, mas ele também pode ser algo assim como
uma rua com múltiplos endereços. Usando-se a versão de uma casa, cada
cômodo irá abrigar um ítem específico que se quer relembrar. Para se tirar
vantagem da habilidade da mente em conter memórias visuais, adornar o ítem a
ser armazenado pode facilitar este processo—por exemplo, o leite que você
precisa comprar no mercado pode se tornar um tonel de leite com uma vaca
falante nadando dentro. Quando estas memórias precisarem ser relembradas, pode
se andar através deste prédio mental, olhando e relembrando cada ítem.
Gregos e romanos, tal como o orador Cícero, empregaram a
técnica do palácio mental para memorizar discursos, marcando a ordem do quê
dizer dentro de um complexo espaço arquitetônico. Naquela época, escrever
qualquer coisa era muito caro e consumia muito tempo, um luxo que não podia ser
desperdiçado mesmo com a retórica. O método de loci continuou a florescer
através da Idade Média quando os monges e outros estudiosos o usavam para
guardar textos religiosos em suas memórias.
No entanto, o método caiu em desuso com a invenção da
imprensa, já que com a disponibilidade dos livros ter se tornado mais fácil, a
necessidade dos poderes de memorização se tornou menos necessária. Mas a
popularidade do método teve um ressurgimento na segunda metado do século 20,
particularmente nas competições internacionais de memória, nos quais os
habilidosos participantes o têm como um instrumento primário para relembrar um
grande número de ítens colocados em uma determinada ordem. O competidor Simon
Reinhard bateu o recorde por memorizar um baralho de cartas em 21.19 segundos
durante o Campeonato Alemão em 2011. E no ano passado, durante o Campeonato da
Suécia, o mesmo Reinhard bateu outro recorde quando foi capaz de memorizar a
ordem de 370 cartas.
Considerando o poder e a história da técnica, é um tanto
surpreendente que Arthur Conan Doyle nunca tenha mencionado a técnica do palácio mental. Ao contrário, ele atribuiu a memória de seu personagem prodígio
a um “Sótão Cerebral” excepcionalmente bem organizado e bem armazenado.
“Eu considero o cérebro do homem como sendo originalmente assim
como um pequeno sótão vazio, e você o preenche com as mobílias que você
escolhe”, Sherlock Holmes diz para John Watson no livro “Um Estudo em Vermelho”,
o primeiro livro de Conan Doyle sobre o detective. E Holmes é cuidadoso ao
preencher o seu Sótão Cerebral somente com memórias que poderão ser úteis, tal como os antigos casos de mistérios. Mas para que ele pudesse ter espaço
para o quê seria verdadeiramente necessário, Holmes jogou todo o resto fora—até
mesmo tendo julgado como não importante o fato da Terra girar em torno do Sol.
Em contraste, o cérebro do Watson é mais parecido com o cérebro do restante da
humanidade, bagunçado com memórias, tanto as valiosas quanto as inanes, e
nenhuma delas seria pré selecionada com base no seu possível valor no futuro.
“A revelação-chave oferecida pala idéia do Sótão Cerebral é a
de que você será capaz de relembrar algo, e você somente pode dizer que
você sabe o quê você relembra se você puder acessar essa lembrança quando você
precisa dela”, diz Maria Konnikova, autora de Mastermind: How to Think
Like Sherlock Holmes (Mente Genial: Como Pensar Como Sherlock Holmes). “De
outra maneira, seria melhor que tudo armazenado tivesse simplesmente desaparecido”,
ela acrescenta. O palácio mental constrói a idéia de armazenamento de
lembranças de forma mais específica quando organiza a informação de uma maneira
determinada. “A idéia do Sótão Cerebral é muito mais ampla”, diz Maria
Konnikova.
É claro que um Palácio Mental soa bem mais grandioso,
adequado a Sherlock Holmes e seu enorme ego, como Watson comentou na 2a.
temporada de “Sherlock”. Entretanto, o palácio mental de Sherlock Holmes, não é
o típico depósito para o método de loci. A maioria das pessoas quando começam a
construir o palácio, escolhem um lugar bem familiar, tal como os lares onde cresceram.
Mas quando os telespectadores tiverem a oportunidade de darem uma olhada dentro
do palácio de Sherlock durante a exibição de “His Last Vow” (Seu Último Voto),
o episódio final da temporada, eles verão algo bastante diferente.
(Alerta estraga-prazer: Cuidado pois o texto agora irá
apresentar alguns momentos reveladores da temporada que poderão estragar a
surpresa dos episódios para quem ainda não os assistiu.)
Holmes, após ser atingido por um tiro à queima roupa, começa
a fuçar o seu palácio em busca do melhor caminho para a sobrevivência. Os
telespectadores o verão tropeçando e caindo em uma escadaria sinuosa, e depois
em um quarto semelhante a um necrotério onde ele encontra sua amiga Molly
Hooper, a assistente do laboratório de patologia, observando-o morto.
“Você tem certeza absoluta de que irá morrer, então você precisa se
concentrar,” diz Molly a Holmes. “É muito sadio e muito sagaz ter um
palácio mental, mas você só tem três segundos de consciência para usar esse seu
palácio”, ela complementa. Holmes descobre que as respostas para continuar vivo estão em seu
cérebro. Mas ele vai além da técnica clássica do palácio mental, encontrando
suas lembranças não somente vagando pelo prédio e localizando os ítens, mas
também através de conversas com pessoas que ele também armazenou lá dentro, tal
como a própria Molly Hooper e o seu irmão Mycroft.
Além da escadaria e do necrotério, o palácio mental de
Holmes inlcui um longo corredor com vários entradas para cômodos cobertos de
memórias. Ao revistar esses cômodos, Holmes é capaz de encontrar a memória do
cachorro que teve em sua infância, Redbeard, memória a qual ele usa para se
acalmar. Há também um quarto acolchoado contendo o agora já morto consultor
criminal Jim Moriarty. Todos esses cômodos não se encaixam muito bem uns aos
outros, de qualquer modo, isto torna pouco provável que o palácio de memórias
de Sherlock seja baseado em um lugar real.
Mas o método de loci não requer uma locação
real, pelo menos de acordo com a pesquisa do laboratório de Jeremy Caplan da
Universidade de Alberta no Canadá. Há alguns anos atrás, Caplan e seus colegas
testaram uma variação do palácio mental. Eles usaram um grupo de pessoas que
desenvolveram um palácio usando o método convencional, ou seja, usando um
prédio real que eles conhecessem. Um segundo grupo de pessoas explorou um
prédio virtual em uma tela de computador por cinco minutos e depois o grupo foi
instruído a colocar suas memórias dentro daquela estrutura.
Quando as memórias dos participantes dos dois grupos foram
testadas, os dois grupos alcançaram um desempenho satisfatório quando tiveram
que memorizar uma lista de palavras não relacionadas umas às outras. Esses dois
grupos ainda tiveram um resultado melhor do que um terceiro grupo que não
utilizou o método de loci.
“Sempre foi considerado que você deveria usar lugares que
você pudesse visualizar facilmente, um lugar que você tenha passado um bom
tempo nele, e assim você possa ter uma rica representação deste espaço. Mas o
quê nós mostramos foi que, na verdade, você não precisa disto”, diz Eric Legge,
o autor principal do estudo.
Também seria possível criar um palácio de memória a partir
de uma estrutura construída inteiramente com a mente, diz o co-autor do estudo,
Christopher Madan. “Trabalhar com um local real e conhecido talvez seja um
pouco mais duro porque desta forma se adiciona mais uma coisa para ser
relembrada”, ele diz. Mas uma pessoa com muita informação complexa para
lembrar, e talvez com uma mente particularmente talentosa, digamos aquela do
detetive britânico, seja capaz de construir um palácio feito sob medida pra
aquele tipo de informação.
Desde o primeiríssimo episódio de Sherlock, sempre foi
aparente que a mente do detetive não trabalha da mesma maneira que a mente da
maioria das pessoas. No momento em que encontra Watson pela primeira vez, Holmes
deduz a história na guerra de seu novo conhecido, bem como sua situação de
moradia, e o estado da relação dele com a família. E no casamento de Watson,
durante o discurso do padrinho do noivo, rola na cabeça de Holmes umas conversas
com Mycroft, conversas que o instigam a solucionar duas tentativas de
assassinato no ato.
Mas os telespectadores descobrem na grande revelação do
episódio “Seu Último Voto” que Holmes não é o único personagem a ter o talento de
construir um palácio mental extensivo. O inimigo de Holmes, o magnata da mídia
e chantagista Augustus Magnussen, também tem o seu palácio mental próprio.
Logo cedo no episódio descobrimos que Magnussen supostamente
guarda todas as evidências que ele usa em seus esquemas de chantagem em um
cofre abaixo de sua grande mansão Appledore. Mas, um pouco mais tarde Magnussen
revela a Holmes, “o cofre de Appledore é meu palácio mental… Eu só me sento
aqui, fecho os meus olhos, e dirijindo-me para baixo vou para os meus cofres. Eu vou
a qualquer lugar dentro dos meus cofres, minhas memórias”.
Assim como Holmes, Magnussen toma uma rota não convencional
na construção de seu palácio mental. Ele coloca suas memórias de chantagens
dentro de um enorme armazén lotado de prateleiras e mobíbilias para arquivos.
Há inclusive telas de cinema para que ele possa rever eventos, tais como Holmes
resgatando Watson de uma fogueira.
Para construir tal palácio mental seria bem mais difícil,
“mas ainda assim é válido”, diz Madan. Um cômodo grande, branco, vazio não
funcionaria, mas um cômodo que tenha locações identificáveis dentro dele
poderia funcionar.
Mas o “Appledore portátil” de Magnussen é muito bem menos
verossímel. Quando o magnata está dando seus rolés, ele parece estar acessando
seu palácio mental como se a informação estive sendo apresentada como palavras
em uma tela bem à frente de seus olhos. Holmes observa o fato e assume que Magnussen
está recebendo informação através de seus óculos—talvez uma forma avançada do
Google Glass. Holmes está surpreso quando ele mais tarde descobre que o cofre
de armazenamento Aplledore do Magnussen é na verdade um palácio mental.
Mas os telespectadores deveriam perdoar o detetive por não
ter deduzido o método de Magnussen mais cedo. Afinal, quando Larry Squire, especialista
em memória da Universidade da Califórnia, em San Diego, soube sobre como
Magnussen pareceu acessar suas memórias lendo-as em uma tela, ele disse, “isso
tá cheirando esquisito”.
Claro que essa não seria mesmo a primeira vez que um programa
de televisão sai do rumo e leva a biologia junto. E mesmo Holmes não poderia
prever quais as idéias malucas que os produtores de televisão de hoje poderiam
inventar para ele.
c&p
Artigo Incrível, gostei muito do conteúdo e do artigo anexo!
ResponderExcluirParabéns!
Maravilhoso, gostei. Muito bem escrito.
ResponderExcluirPerfeito.
ResponderExcluirÓtimo artigo! Agora vou procurar o livro citado no texto.
ResponderExcluirGostei muito do artigo,parabéns pela tradução.
ResponderExcluircondiz perfeitamente com o contexto explicito na serie e na metodologia de loci.
ResponderExcluirmuito bom, parabéns!
ResponderExcluirparabéns pelo artigo.
ResponderExcluirExcelente!!!
ResponderExcluirMuito esclarecedor obrigado
ResponderExcluirElementar
ResponderExcluirAinda prefiro locais reais. Locais virtuais são dificeis de construir.
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