O Fungo da Banana Contra O Vírus da Imbecilidade


A imagem acima é uma obra de autoria do artista urbano inglês D*Face, onde ele interfere na lendária Banana que o pai da arte pop, Andy Warhol, criou para a capa do disco “Velvet Underground and Nico” lançado em 1967. Em entrevista para Manoel Bello do site Fecal Face em 2008, o artista explica com a “ironia punk rock” típica de seu estilo artístico, quem ele é: “D*Face é um projeto secreto do governo iniciado por volta de 10 anos atrás para testar a consciência e resistência do público quando este se depara com uma alternativa para a propaganda publicitária mundana que rodeia nosso domínio público”.

Recentemente os cientistas vêm dando um sério alerta sobre um fungo que está se alastrando pelo mundo e destruindo as grandes plantações de banana. Segundo o jornal inglês The Independent o mercado de bananas vale hoje 26 bilhões de Euros e a fruta faz parte da dieta de 400 milhões de pessoas, mas hoje a banana encara um “’desastre’ provindo de uma doença virulenta imune aos pesticidas ou a outras formas de controle”.

A doença se espalhou pela Ásia, África, Oriente Médio e já pode ser encontrada em plantações da América Latina. E para quem estiver interessado sobre esta tragédia que vem assolando o planeta, tem um artigo no site do Vice que traz uma entrevista com Dan Koeppel, autor do livro “Banana: O Destino da Fruta que Mudou o Mundo” de 2007, um especialista em banana que vem acompanhando o fungo conhecido como o mal-do-panamá.

Mas enquanto a banana sofre seu infortúnio imunológico, a fruta ainda lida hoje com o status de símbolo para uma outra enfermidade que já afeta o ser humano há séculos. Tal enfermidade não é causada por fungo, nem por vírus, e nem mesmo por alguma bactéria. Tal enfermidade pode ser considerada como um transtorno mental causado por um desvio educacional do caráter humano quando este ainda se encontra em fase de formação fisiológica: o ódio dirigido a um específico grupo étnico.

O racismo dirigido aos afro-descendentes, que é fruto da ignorância e não de uma diferenciação genética, age como um vírus que corrói o tecido social e pode ser letal caso não controlado pelo setor público. No Brasil, muito embora o racismo seja crime, este ainda não é tratado como tal pelas autoridades.

Por alguma razão, tornou-se comum vermos a enferma banana sendo lançada nos campos de futebol para simbolizar um descontentamento direcionado a determinados jogadores, por nenhuma razão plausível, a não ser pelo absurdo ódio dirigido aos negros.

Este ódio não está baseado na falta de habilidades futibolísticas dos jogadores. O arremesso de bananas também não ocorre pelo fato dos torcedores estarem preocupados com o nível de potássio no organismo dos jogadores. No Brasil e no mundo, alguns torcedores jogam bananas exclusivamente para os jogadores não-brancos com o único objetivo de ofendê-los, simbolicamente os chamando de macacos.

E foi neste contexto de futebol e arremessos de bananas que o brasileiro Daniel Alves, jogador do Barcelona, no dia 27, pegou uma dessas bananas que lhe foi lançada durante uma partida do final do campeonato espanhol, e a comeu. Assim o fazendo, ele se tornou um símbolo contra o racismo depositado em campo. Ato corajoso e arriscado, diríamos, pois quem conhece a estória da Branca de neve, reconheceria a possibilidade daquela fruta estar carregando uma combinação letal de ódio, ciúme, inveja, agressividade e soberba. Mas ele comeu a banana e não entrou em sono profundo.

Em entrevista a BBC Brasil, Daniel disse: “Foi tão natural e intuitivo, que só depois pensei na preocupação dos meus pais, porque eu nem pensei se tinha alguma coisa na banana”. Sua boa intuição o levou a conquistar espaço no jornalismo mundial com a atitude nada convencional ao lidar espontaneamente com a tal prática racista, que resultou em uma proposta anti-racista inusitada—e assim, foi gol.

Nesta deixa, o jovem muito talentoso Neymar, também do Barcelona e que também já recebeu bananas de torcedores, “iniciou” uma “campanha” no mesmo dia em que Daniel comeu a banana, com o intuito de combater o racismo. Porém, o bastante ocupado jogador de futebol e garoto-propaganda recebeu a assistência da Loducca, uma das maiores agências publicitárias do país, que se uniu ao jogador “pois ele teria enxergado a necessidade de se criar uma ação contra o racismo, tendo em vista recentes episódios de preconceito em que atletas brasileiros foram vítimas”, segundo declarou um representante daquela empresa, como reporta o Portal Fórum.

Segundo ainda o Portal Fórum, tudo indica que a tal campanha nasceu da experiência dos jogadores Neymar e Daniel com o racismo que eles enfrentam como jogadores fora do Brasil. E foi assim a campanha se iniciou no Brasil: Por atos de racismo contra jogadores brasileiros fora do país.

Basicamente, a campanha consiste em tirar uma foto comendo banana, sozinho ou acompanhado, e rashitagueá-la com #SomosTodosMacacos. Quem o fizer estabelece um senso de empatia imediata—e, certamente passageira—com a população negra que compõe o grupo alvo da ofensa que usa a figura do macaco. (Lembrete: Quem quiser participar da campanha é bom tirar a foto com a banana afastada da boca para que a foto não pareça pertencer a um guia ilustrado de iniciação à prática da felação.)

A despeito do valor social que a campanha possa ter, bem como a real e boa intenção nela embutida, ela deixa aberta uma grande brecha para questionamentos, tal como: Esta apropriação do termo macaco, enquanto um termo pejorativo usado com a clara intenção de ofender, estaria reforçando a idéia de que a população negra é verdadeiramente composta de macacos e que mereceria ser tratada com o mesmo respeito reservado aos seres humanos de pele clara? Esta pergunta resume de certa forma parte da discussão sobre a tal campanha contra o racismo, como a qual o Blog feminista Bidê Brasil se posicionou argumentando que, “Não #SomosTodosMacacos pelo simples fato que isso reverbera uma lógica ancestral de que há um setor na nossa sociedade mais evoluído do que o outro”.

Mas a participação de uma agência publicitária neste caso apresenta uma nova pergunta: Como distinguir uma “campanha de conscientização social” de uma “propaganda de um evento social”? Para quem é fã da série de TV Mad Men, obviamente questionará a qualidade desta peça publicitária levando em consideração o “fungo” que ameaça extinguir a fruta banana. No entanto, não é a banana que está sendo vendida. Mas ainda pelo fato de que “#somos todos consumidores”, sabemos que agências publicitárias tentam chamar a atenção, primeiramente, para depois apresentar o produto. Desta forma, criar polêmica é uma estratégia bem eficaz para captar a atenção do público. Mas não há “produto” no qual tal campanha publicitária possa capitalizar. Bem, se não há produto, então talvez poderia esta ser mesmo uma “campanha de conscientização social”.

Um fato interessante. O Portal Terra em 2012 noticiou que, “Vinte e cinco espécies dos parentes vivos mais próximos dos seres humanos - símios, macacos e lêmures - precisam de proteção urgente contra extinção, afirmou um relatório de grupos internacionais de conservação”, e dentre elas “o macaco-prego Ka'apor, no Brasil.” Estes parentes próximos do ser humano correm o risco de desaparecerem do planeta, juntamente com as bananas popularmente associadas a eles. Talvez a estes deveria ser guardada a frase “somos todos macacos” para ser usada em uma camiseta, pois, no contexto de uma campanha publicitária para salvar o macaco-prego, a frase confeccionada por Neymar e pela Loducca seria bem mais adequada.

E as celebridades envolvidas no caso? Assim como não podemos duvidar que as celebridades que aderiram a campanha “somos todos macacos” tenham a séria e real intenção de atacar o racismo, é também impossível deixarmos de pensar na maneira pela qual a campanha foi elaborada, veiculada, e apropriada enquanto parte da cultura de consumo e cultura de celebridades. Na verdade, algumas destas celebridades que aderiram a campanha Neymar/Loducca sempre tiveram o espaço e a voz para se pronunciarem contra o racismo.

Por isto talvez, somente talvez, fosse pertinente saber quais dessas celebridades que aderiram a campanha têm um envolvimento efetivo contra o racismo e contra a exclusão social, seja dentro ou fora do movimento negro. Tal engajamento com os movimentos sociais destas figuras públicas daria maior credibilidade à campanha, mesmo levando em conta que a própria agência Loducca muito pouco utiliza modelos negros em seus vídeos publicitários, tendo usado chipanzés em duas campanhas, uma em 1994 e outra em 2001, conforme busca na página da Loducca no Facebook. (Entre e tente achar um negro(a) nos vídeos publicitários; por falta de muito tempo conseguimos achar somente 3.)



Campanha publicitária da Mabel; filme “Macaco” (Loducca, 2001).

Através de um olhar exclusivo por este ângulo de engajamento com o movimento negro brasileiro, se pode afirmar que esta campanha contra o racismo logo de início se posicionou como excludente por não incluir na sua elaboração estes movimentos sociais organizados que lidam com o tema do racismo por muitos anos. Assim, por mais que a mesma seja sincera, ela infelizmente corre o risco de não passar como uma febre da internet caso não apresente uma ação subsequente.

Outro risco que a campanha corre é o de ser vista exclusivamente como uma estratégia para evitar que o insulto da banana e do macaco sejam utilizados durante as partidas da copa do mundo e assim evitar que o Brasil seja observado como racista pelas lentes internacionais. Se este for o caso, isto ainda faria da campanha da Loducca se tornar um tiro no pé ao passar uma imagem de um país que se auto-identifica como um país de macacos—semelhante a visão de sub-desenvolvimento e atraso humano que a Europa e os Estados Unidos compartilhavam sobre a América Latina no século 19 e início do século 20.

Não surpreendentemente, o governo Dilma embarcou neste trem e garantiu que o racismo não será tolerado durante a Copa. De fato, desde março o governo já vem manifestando esta preocupação quando dos casos de racismo nos campos brasileiros ocorridos com o volante Tinga e o árbitro Márcio Chagas da Silva, ambos chamados de macaco. Um artigo da Gazeta do Povo de março deste ano reporta:

“’Em primeiro lugar, a grande contribuição que o Movimento Negro trouxe para essa discussão é que a questão principal não é o racismo na Copa do Mundo. A questão principal é o racismo que existe nas sociedades e que, portanto, se manifesta no futebol’, contou a ministra Luíza Barros. ‘De todo modo, o governo está empenhado numa campanha que será feita na Copa contra o racismo’”.

O perigo da falta de engajamento desta campanha com os setores da sociedade civil e com os setores governamentais que lidam com a questão de direitos raciais, é: E depois da Copa? Quais são os planos para o futuro da campanha? Quais serão os seus desdobramentos? Mas muito embora o governo federal reconheça a importância do engajamento com o movimento negro, o governo Dilma ainda parece mostrar uma preocupação específica com a copa do mundo—desde março ela tenta convencer o Papa a se pronunciar contra o racismo durante os jogos no Brasil, como se um pronunciamento papal fosse impedir os racistas de cometerem ofensas, uma vez que nem a Constituição Federal o faz.

Contudo, talvez em apenas alguns anos poderemos não mais ter bananas no mundo. Nem para comer e nem para jogar nos campos de futebol, e é importante que se frise que isso não quer dizer que o racismo acabará paralelamente à extinção desta fruta. Da mesma forma que não será com a extinção de todas as espécies de macacos que terminará com a barbárie do ódio ao próximo estimulado pela cor da pele.

A comparação de negros com macacos não deve ser feita por razões que já mencionamos anteriormente aqui no Blog. Também, esta comparação carrega séculos de ódio, selvageria e imbecilidade que tornaria ineficaz uma tentativa de recodificação (reversão de significado) da palavra macaco, seguindo a estratégia de apropriação de termos vexatórios e ofensivos pelo grupo atingido pela ofensa, para que os mesmos possam ser usados como termos que validem e empoderem a identidade política daquele mesmo grupo.

A impossibilidade de reversão de significado da palavra macaco objetivado por esta campanha poderia também se dar pelo fato de que a apropriação da figura do macaco não ter sido originada e nem ter sido realizada com a participação dos movimentos sociais que representam o grupo agredido diretamente no Brasil. Por isso, cabe ressaltar, que não são todos os termos que apresentam a possibilidade de serem transformados em termos de empoderamento político-social, assim como atualmente acontece com o termo “vadia” que vem sendo recodificado a partir de um diálogo de reelaboração estratégica que ocorre dentro do próprio movimento de mulheres, e não exclusivamente dentro de uma agência publicitária.

Infelizmente, ao vermos a foto de Luciano Hulk segurando uma banana com sua esposa Angélica, e paralelamente vendendo as camisetas da campanha, percebe-se que não é só a banana que hoje se encontra enferma e sendo abatida por uma doença possivelmente incurável.

O fenômeno de capitalização do racismo revela que o ser humano está acometido de um vírus que impede o perfeito funcionamento do “bom senso”, pois no fundo a questão é muito menos complicada, ou seja: enquanto, por inúmeras razões, houverem negros sendo assassinados diariamente; enquanto houver forte resistência contra as cotas raciais nas universidades e em outros setores da sociedade; enquanto houver a ausência de atores negros na televisão e no cinema; enquanto não houver a presença de negros e negras em campanhas publicitárias de TV e outras mídias; enquanto houver a ausência de negros em todas as instâncias políticas do país; enquanto não houver infraestrutura básica nos bairros chamados de favelas e comunidades, não haverão bananas o suficiente para se combater o preconceito contra os negros.

A atitude de Daniel Alves se torna brilhantemente memorável por ter sido um ato singular. E é aqui que se faz necessário alertar que não será comendo aipim no facebook que se terminará com o genocídio dos índios brasileiros; ou comendo rapadura no twitter que se acabará com o preconceito contra os nordestinos.

Existe uma postura anti-racista perfeita? Claramente, esta é dependente de contextos específicos. E é por isso que muito embora a campanha “somos todos macacos” tenha apresentado sérios problemas de representação identitária, ela foi capaz de—talvez por pura serendipidade—criar uma polêmica que claramente chamou a atenção para a questão do racismo e, consequentemente foi capaz de abrir um debate público sobre estratégias para se lidar hoje com este clássico e funesto tema. Mesmo assim, a campanha passou apenas como uma mera polêmica. Bem, agora cabe a todos nós no nosso dia a dia, dar continuidade a posturas anti-racistas lembrando sempre de usar o velho e bom senso.

Com isto em mente, vale a pena relembrar que um sistema de educação com recursos verdadeiramente pedagógicos e de valores humanistas poderá resgatar os brasileiros da epidemia de imbecilidade e da falta de bom senso que gera a inequalidade social e que perpetua o racismo. Da mesma maneira, faz-se necessário que o sistema jurídico-legal repreenda as ocorrências dos crimes de racismo colocando-se alerta para cumprir a lei. Esta deveria ser a real preocupação e cobrança por parte da população, incluindo as celebridades e, fundamentalmente, do governo federal a despeito total da copa do mundo.

Por isso, sim, comam bananas. Mas comam com vontade, pois diz-se que em breve elas desaparecerão.

c&p

2 comentários:

  1. Feliz dia do Trabalhador! Mais um bom texto. Legal mesmo foi a tentativa de desculpa da Loducca, criticando quem discordou da campanha lançada por ela haha. https://www.facebook.com/AgenciaLoducca/posts/703838776342244

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    1. Dinho,
      Feliz Dia do Trabalho pra você também! Obrigado pelo link. Interessante o fato da agência não compreender que a maioria das críticas foram feitas não por falta do entendimento da “ironia” da campanha, mas sim por discordar desta ironia.

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